Quarenta e seis anos depois, a vietnamita que comoveu o mundo quer que sua foto contribua para a paz
Só vi esse registro muito tempo depois. Passei 14 meses no hospital, tratando as queimaduras. Quando voltei para casa, meu pai me mostrou a foto, recortada de um jornal vietnamita: “Aqui está sua foto, Kim”. Olhei a foto e, meu Deus, como fiquei envergonhada! Como eu estava feia! E pelada! Todos estavam vestidos, e eu, uma menina, estava sem roupa. Vi a agonia e dor em meu rosto. Fiquei com raiva. Por que ele tirou aquela foto de mim? Era melhor não ter tirado nenhuma! Eu era só uma criança, mas tinha de lidar com muita dor. Quanto mais famosa a imagem ficava, mais eu precisava encarar minha tragédia.
Kim Phuc Phan Thi, em depoimento a Ruan de Sousa Gabriel, 19/09/2018. Disponível em https://epoca.globo.com/.
a) Justifique o emprego das sentenças exclamativas, explicitando o motivo do espanto de Kim.
b) A partir da expressão “minha tragédia”, que encerra o depoimento, analise os dois níveis de apreensão do evento trágico, considerando o momento do primeiro contato de Kim com o registro fotográfico e o momento do testemunho.
a) Kim Phuc Phan Thi protagonizou um dos momentos mais trágicos da guerra do Vietnã. Sua aldeia foi bombardeada pelos norte-americanos com uma substância incendiária conhecida como Napalm. A população do vilarejo, sobretudo crianças, fugia das chamas, quando a célebre fotografia que ilustra a questão foi tirada. Nela, ao centro, está a menina Kim, aos nove anos, nua, correndo em desespero. Assim, o relato da mulher Kim, décadas depois, é emocionado porque passa pela recordação do momento em que ela, após o retorno do hospital, viu a fatídica foto, que lhe foi mostrada pelo seu pai. Há nessa visão dois pontos de vista distintos que se encontram: o da pessoa que viveu a catástrofe e o do fotógrafo Huynh Cong Ut. Esse contraste causa espanto em Kim. Sua memória do acontecimento se choca com a perspectiva da fotografia uma vez que, ao ver-se retratada da maneira como foi, ela sente vergonha (“Olhei a foto e, meu Deus, como fiquei envergonhada! Como eu estava feia! E pelada!”) e revolta (“Fiquei com raiva. Por que ele tirou aquela foto de mim? Era melhor não ter tirado nenhuma!”). Esses sentimentos são expressos, no discurso direto transcrito pelo jornalista Ruan de Sousa Gabriel, com os pontos de exclamação e interrogação. Isto é, as sentenças exclamativas têm como finalidade expressar o descontentamento de Kim com sua imagem naquela fotografia, que entrou para a História.
b) A exasperação causada pela visão da foto leva Kim a empregar a expressão "minha tragédia". Essa expressão pode ser lida de maneiras diferentes. Ora, houve uma tragédia no confronto violento, no bombardeio de sua aldeia, nas queimaduras sofridas, no tempo de recuperação do trauma físico; mas também foi trágica a exposição de seu sofrimento ao mundo, da maneira como se deu na divulgação massiva de sua imagem. No primeiro sentido, portanto, pode-se compreender que o evento trágico está ligado ao plano coletivo, social (a tragédia seria de Kim, mas também partilhada por seus concidadãos). No segundo, parece evocar-se a ideia de que o evento trágico é pessoal (a vergonha sofrida por Kim naquele momento).
Pode-se organizar, assim, a percepção de Kim sobre sua fotografia cronologicamente: primeiro a vergonha e o desejo de que a imagem não tivesse sido feita (o momento do primeiro contato com a foto), posteriormente, a aceitação do registro e a vontade de aproveitá-lo para a promoção do bem comum, uma contribuição à paz, como ressalta o título (quando do testemunho ao jornalista).