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Questão 2 Fuvest 2020 - 2ª fase - dia 1 - Português e Redação

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Questão 2

textos científicos e de divulgação científica

A reinvenção da vírgula


        No começo de 1902, Machado de Assis ficou desesperado por causa de um erro de revisão no prefácio da segunda edição de suas Poesias completas. Dizem que chegou a se ajoelhar aos pés do Garnier implorando para que o editor tirasse o livro de circulação. O aristocrático e impoluto Machado, quem diria. Mas a gralha era mesmo feia. O tipógrafo trocou o E por A na palavra cegara, o revisor deixou passar, e vocês imaginam no que deu.
        No nosso caso, o erro não foi nada de mais, nem erro foi para falar a verdade, apenas um acréscimo besta de pontuação, talvez dispensável, ainda que de modo algum incorreto. Vai o revisor, fiel à ortodoxia da gramática normativa, e espeta duas vírgulas para isolar um adjunto adverbial deslocado, coisa de pouca monta, diria alguém, mas suficiente para o autor sair bradando aos quatro ventos que lhe roubaram o ritmo da sentença. Um editor experiente traria um cafezinho bem doce, a conter o ímpeto dramático do autor de primeira viagem, talvez caçoando, “deixa de onda”, a lembrá-lo – valha-me Deus! – que ele não é nenhum Bruxo do Cosme Velho*. E assim lhe cortando as asas antes do voo.

* Referente a Machado de Assis.


Disponível em https://jornal.usp.br/artigos/areinvencaodavirgula/. Adaptado.


a) Qual o sentido da palavra “espeta”, destacada no texto, e qual o efeito que ela produz?
b) Explique o significado, no texto, da expressão “cortando as asas antes do voo”.



Resolução

a) O verbo “espetar”, nesse contexto, tem sentido de inserir, colocar, mas parece descrever uma atitude intrometida, à revelia do escritor. O revisor, segundo a narrativa, virgularia por fidelidade “à ortodoxia da gramática normativa”, independentemente da preocupação com o estilo do autor (“o ritmo da sentença”). Por isso, “espetar” ressalta que as vírgulas foram postas em lugar a que não pertenciam anteriormente.

b) Um autor que, hipoteticamente, ficasse enfurecido (“bradando aos quatro ventos”) com uma pequena intromissão do editor em seu texto (“coisa de pouca monta”), poderia, lê-se no excerto, ser recebido por um profissional experiente, com “um cafezinho bem doce”, isto é, ouvir do editor um pretenso discurso amigável, em resposta à agressividade da abordagem. Essa resposta aparentemente amena, porém cáustica, teria como finalidade rebater a soberba do escritor enfurecido pela modificação ínfima de seu texto, cortando-lhe as asas antes do voo. Assim, essa expressão deve ser lida como a intenção de o editor conter a empáfia do escritor iniciante e lembrá-lo de que ele não é Machado de Assis (O Bruxo do Cosme Velho), que, como se narrou no primeiro parágrafo, sofreu com as ingerências dos editores de sua época.