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Questão 8 Fuvest 2020 - 2ª fase - dia 1 - Português e Redação

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Questão 8

O cortiço Quincas Borba

Texto 1
Desde que a febre de possuir se apoderou dele totalmente, todos os seus atos, todos, fosse omais simples, visavam um interesse pecuniário. Só tinha uma preocupação: aumentar os bens. Das suas hortas recolhia para si e para a companheira os piores legumes, aqueles que, por maus, ninguém compraria; as suas galinhas produziam muito e ele não comia um ovo, do que no entanto gostava imenso; vendia-os todos e contentava-se com os restos da comida dos trabalhadores. Aquilo já não era ambição, era uma moléstia nervosa, uma loucura, um desespero de acumular, de reduzir tudo a moeda. E seu tipo baixote, socado, de cabelos à escovinha, a barba sempre por fazer, ia e vinha da pedreira para a venda, da venda às hortas e ao capinzal, sempre em mangas de camisa, de tamancos, sem meias, olhando para todos os lados, com o seu eterno ar de cobiça, apoderando-se, com os olhos, de tudo aquilo de que ele não podia apoderar-se logo com as unhas.

Aluísio Azevedo, O Cortiço.

Texto 2
(...) Rubião é sócio do marido de Sofia, em uma casa de importação, à Rua da Alfândega, sob a firma Palha & Cia. Era o negócio que este ia propor-lhe, naquela noite, em que achou o Dr. Camacho na casa de Botafogo. Apesar de fácil, Rubião recuou algum tempo. Pediam-lhe uns bons pares de contos de réis, não entendia de comércio, não lhe tinha inclinação. Demais, os gastos particulares eram já grandes; o capital precisava do regime do bom juro e alguma poupança, a ver se recobrava as cores e as carnes primitivas. O regime que lhe indicavam não era claro; Rubião não podia compreender os algarismos do Palha, cálculos de lucros, tabelas de preço, direitos da alfândega, nada; mas, a linguagem falada supria a escrita. Palha dizia coisas extraordinárias, aconselhava o amigo que aproveitasse a ocasião para pôr o dinheiro a caminho, multiplicá-lo.

Machado de Assis, Quincas Borba.

a) Como o contraste entre os trechos “já não era ambição, era uma moléstia nervosa, uma loucura, um desespero de acumular” e “não entendia de comércio, não lhe tinha inclinação”, respectivamente sobre as personagens João Romão e Rubião, reflete distintas linhas estéticas na prosa brasileira do fim do século XIX?
b) A partir das diferentes esferas sociais e práticas econômicas referidas nos fragmentos, trace um breve paralelo entre as trajetórias dos protagonistas nos dois romances.



Resolução

a) Para responder esse item, é importante que o candidato faça uma leitura atenta do enunciado, que salienta o contraste entre os excertos apresentados. Além disso, a pergunta centra-se no aspecto estético dos referidos trechos, considerando que cada um representa uma das diferentes linhas literárias que caracterizam a prosa brasileira do final do século XIX. Isto posto, é fundamental que o candidato mobilize seus conhecimentos a respeito das características do Realismo e do Naturalismo e os associe aos textos, demonstrando em que eles se diferenciam do ponto de vista estético.

Assim, é possível associar o trecho  de O Cortiço “já não era ambição, era uma moléstia nervosa, uma loucura, um desespero de acumular” à corrente naturalista, uma vez que a descrição de João Romão vai além da caracterização moral, afirmando que sua ganância era algo que ultrapassava a ambição, chegando a ser uma espécie de patologia. As escolhas lexicais do narrador  - “moléstia nervosa”, loucura” e “desespero” - contribuem para a se ressaltar esse aspecto doentio do caráter do personagem. Além disso, esse vocabulário evidencia a filiação da obra ao Naturalismo, uma vez que essa estética analisava os personagens a partir de uma perspectiva biológica, em que os traços de caráter eram associados a doenças e patologias.

O excerto do romance Quincas Borba – “não entendia de comércio, não lhe tinha inclinação” – evidencia a filiação da obra ao Realismo, pois esse traço da personalidade de Rubião é apresentado de modo mais sóbrio e objetivo, qualidade literária prezada pelos autores realistas. Além disso, ao contrário do excerto anterior o narrador não associa essa característica a algum tipo de patologia, o que distancia a obra do Naturalismo.

b) O excertos dos romances apresentados evidenciam características fundamentais de seus protagonistas, João Romão, o predador e Rubião, a presa, e apontam para a trajetória que cada um deverá percorrer nas respectivas narrativas: enquanto o primeiro vem para o Rio de Janeiro para vencer, o segundo chega à cidade grande para ser vencido.

João Romão é um imigrante português extremamente avarento, que vivia para acumular, cuja fortuna foi obtida a partir de meios escusos e desonestos. Além de roubar os fregueses nos pesos e medidas de sua venda e explorar os moradores do cortiço que lhe pagavam o aluguel, ele furtava o material com o qual construía as casas. Entretanto, a figura da escrava Bertoleza foi fundamental para que ele conseguisse acumular capital, pois ele a enganou com uma carta de alforria falsa, apropriando-se de todas as suas economias e, ainda, ao tornar-se seu amante, passou a explorar seu trabalho de modo que a condição de escrava da personagem não mudou. Já em posse de uma grande fortuna, Romão ambiciona ser admitido na alta sociedade através de um casamento de conveniência com a filha do rico comerciante Miranda, seu conterrâneo. Neste ponto, Bertoleza havia se transformado num estorvo e ele a denuncia à polícia e a entrega a seus antigos donos. Percebendo que fora enganada, Bertoleza se suicida. Por fim, João Romão alcança seus objetivos e ascende socialmente, saindo de um estado de exploração selvagem e brutal para uma condição especulativa mais disciplinada, de acordo com as exigências do capitalismo que se implantava no Brasil no final do século XIX.

Rubião, por sua vez, chega ao Rio de janeiro em condições bem diferentes das de João Romão. Herdeiro da fortuna de seu amigo Quincas Borba, o personagem pretende estabelecer-se na corte e levar uma vida de conforto no novo meio social que o dinheiro permitia-lhe frequentar. No entanto, seu caráter ingênuo e simplório não lhe permite perceber o jogo de interesses que move aquela sociedade e ele acaba se tornando uma presa fácil nas mãos do casal Palha: seduzido pela bela e misteriosa Sofia, ele se deixa enredar pela lábia de seu marido Cristiano, financiando seus negócios e emprestando seu dinheiro em complexas transações comerciais as quais ele não entendia muito bem. Confiando na amizade de Palha e no amor de Sofia, ele se deixa enredar e acaba espoliado de seus bens a ponto de chegar à loucura e, por fim, à morte.

Em suma, João Romão, movido pela ambição doentia, consegue vencer o meio empregando sua sagacidade e esperteza para explorar aqueles de quem se aproxima, Rubião, ao contrário, tolo e inocente, deixa-se enganar por tipos que, embora aparentem serem mais civilizados que Romão, são movidos pela mesma ganância e mesquinhez que os fazem usar do outro em benefício próprio.