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Questão 2 Unicamp 2020 - 2ª fase - dia 1 - Português, Inglês e Redação

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Questão 2

Quarto de despejo Casimiro de Abreu

Texto I

(...) Contemplava extasiada o céu cor de anil. E eu fiquei compreendendo que eu adoro o meu Brasil. O meu olhar posou nos arvoredos que existe no início da rua Pedro Vicente. As folhas movia-se. Pensei: elas estão aplaudindo este meu gesto de amor a minha Pátria. (...) Toquei o carrinho e fui buscar mais papeis. A Vera ia sorrindo. E eu pensei no Casemiro de Abreu, que disse: “Ri criança. A vida é bela”. Só se a vida era boa naquele tempo. Porque agora a época está apropriada para dizer: “Chora criança. A vida é amarga”.

(Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo. São Paulo: Ática, 2014, p. 35-36.)

Texto II

RISOS

Ri, criança, a vida é curta,

O sonho dura um instante.

Depois... o cipreste esguio

Mostra a cova ao viandante!

 

A vida é triste ̶ quem nega? ̶

Nem vale a pena dizê-lo.

Deus a parte entre seus dedos

Qual um fio de cabelo!

 

Como o dia, a nossa vida

Na aurora ̶ é toda venturas,

De tarde ̶ doce tristeza,

De noite ̶ sombras escuras!

 

A velhice tem gemidos,

̶ A dor das visões passadas ̶

̶ A mocidade ̶ queixumes,

Só a infância tem risadas!

 

Ri, criança, a vida é curta,

O sonho dura um instante.

Depois... o cipreste esguio

Mostra a cova ao viandante!

(Casemiro J. M. de Abreu, As primaveras. Rio de Janeiro: Tipografia de Paula Brito,1859, p. 237-238.)

 


a) Nas três linhas iniciais do texto I, a autora estabelece uma relação entre o sujeito da ação e o espaço em que ele se encontra. Mencione e explique dois recursos poéticos que compõem a cena narrativa.

b) A representação da infância no texto I se aproxima e, ao mesmo tempo, difere daquela que se encontra no texto II. Considerando que o texto I é um excerto do diário de Carolina Maria de Jesus e o texto II é um poema romântico, identifique e explique essa diferença na representação da infância, com base nos períodos literários.



Resolução

a) No excerto mencionado, observa-se o emprego de dois recursos poéticos na prosa de Carolina Maria de Jesus. Um deles, relacionado a um aspecto formal, é a rima entre “anil” e “Brasil” observada no excerto: “Contemplava extasiada o céu cor de anil. E eu fiquei compreendendo que eu adoro o meu Brasil.” Outro recurso, relacionado à construção de sentido, é o emprego da personificação, presente em “O meu olhar posou nos arvoredos (...)” e “As folhas movia-se. Pensei: elas estão aplaudindo (...)”; nos dois trechos, a autora atribui ações e intencionalidade a seres inanimados.

b) O trecho de Quarto de despejo evidencia que a autora, embora não tenha tido acesso à educação formal, apresentava familiaridade com a cultura letrada e frequentemente dialogava com autores e obras do cânone literário. Nesse caso, ela retoma intertextualmente um verso de Casimiro de Abreu, poeta do romantismo brasileiro, e polemiza com um poema em que esse autor expressa uma visão idealizada da infância. Nesse poema, intitulado “Risos”, o eu-lírico, colocando-se na posição de quem tem experiência e conhecimento sobre a vida, interpela uma criança e a aconselha a rir, ou seja, a ser feliz no momento de sua infância, única fase em que é possível experimentar a felicidade, visto que a juventude e a vida adulta serão marcadas pelos dissabores e desilusões. Trata-se de uma postura típica da segunda geração romântica, em que os poetas apresentavam uma concepção pessimista sobre a vida e procuravam fugir da realidade, projetando a felicidade no mundo dos sonhos, no amor e até mesmo na infância perdida. Carolina de Jesus escreve sua obra entre as décadas de 50 e 60, no período após o Estado Novo, em que houve uma abertura democrática para a emergência de vozes até então ignoradas na literatura brasileira. Nesse contexto, a autora - caracterizada como mulher, negra, pobre, moradora da favela e catadora de lixo - encontra uma receptividade para sua obra e publica seus diários sob o título “Quarto de Despejo”. Nesse livro, ela relata seu cotidiano na favela do Canindé e suas andanças pela cidade de São Paulo no trabalho de recolher do lixo materiais que poderiam ser vendidos nos ferros-velhos; forma pela qual ela conseguia sobreviver e sustentar seus três filhos. No excerto citado, ao observar o sorriso de sua filha Vera, a autora se recorda do poema de Casimiro de Abreu, reproduzindo um de seus versos com uma pequena alteração: no texto original, o poeta diz “Ri, criança, a vida é curta”, enquanto a autora o cita como ““Ri criança. A vida é bela”. Tal alteração contribui para a expressão da visão de mundo de Carolina de Jesus, uma vez que ela recria o verso dizendo “Chora criança. A vida é amarga”.  Dessa forma, ela se opõe à concepção idealizada da vida e da infância presente no poema romântico, expressando a difícil realidade enfrentada não apenas por sua família, mas por grande parte da população brasileira que, naquele período, se via empurrada para as favelas, às margens dos rios da cidade e às margens da própria cidadania.