O dicionarista e historiador Nei Lopes, autor do Dicionário banto do Brasil, afirmou, em entrevista à Revista Fapesp:
Resolvi elaborar um dicionário para identificar os vocábulos da língua portuguesa com origem no universo dos povos bantos, denominação que engloba centenas de línguas e dialetos africanos. Palavras como babá, baia, banda, caçapa, cachimbo, dengo, farofa, fofoca e minhoca, por exemplo, têm origem provável ou comprovada em línguas bantas e o quimbundo pode ter sido o idioma que mais contribuiu à formação de nosso vocabulário. Ao constatar tal quantidade de palavras originárias de idiomas bantos que circulam pelo país, quis comprovar a importância dessas culturas para o contexto nacional. Assim, escrever dicionários, para mim, também é uma tarefa política. Percebi que dicionários funcionam como um meio didático eficaz para disseminar conhecimento.
Os currículos costumam começar a abordagem sobre a África a partir da escravidão, partindo do princípio de que os nossos ancestrais foram todos escravos. Nos ensinamentos sobre o assunto, é preciso descolonizar o pensamento brasileiro, deixando evidente como os grandes centros europeus espoliaram o continente e que, hoje, a realidade africana é fruto dessas ações.
(Adaptado de Nei Lopes, O dicionário heterodoxo. Entrevista concedida a Cristina Queiroz. Revista Fapesp. Edição 275, jan. 2019. Disponível em http://revistapesquisa.fapesp.br/ 2019/01/10/nei-braz-lopes-o-dicionarista-heterodoxo/. Acessado em 23/08/2019.)
a) Explique, com base em dois argumentos presentes no texto, por que, para o autor, escrever dicionários é uma tarefa política.
b) Que crítica o autor faz aos currículos escolares e que abordagem propõe para o assunto?
a) De acordo com o que o autor afirma no excerto da entrevista, escrever dicionários é uma tarefa política que pode ajudar a mudar conceitos e concepções que se encontram enraizados no modo de se compreender a história e a sociedade. Um argumento que sustenta esse ponto de vista é que, ao elaborar um dicionário com vocábulos da língua portuguesa que se originaram dos idiomas bantos, Nei Lopes apresenta a contribuição dessas culturas de origem africana para o contexto brasileiro. Ao disseminar esse tipo de conhecimento através do dicionário, o autor apresenta uma perspectiva que vai além de uma visão que reduz os ancestrais africanos somente à condição de escravos. Essa nova perspectiva possibilita descolonizar o pensamento, evidenciando que, no passado, a África foi espoliada pelas potências europeias e que a realidade atual do continente é resultado dessas ações. Outro argumento que reforça o ponto de vista do autor é que dicionários funcionam como um meio didático eficaz para disseminar conhecimento e as escolhas dos conhecimentos que serão disseminados e do que será enfatizado são tarefas políticas. Em suma, ao escrever esse dicionário, Lopes retrata os africanos como produtores de cultura, muito além da condição de escravizados, o que acarreta mudanças políticas na compreensão da história da formação do país e de seu povo.
b) Nei Lopes critica o fato de os currículos escolares abordarem a história da África a partir da escravidão, partindo do pressuposto de que os ancestrais africanos eram todos escravos, ou seja, como se a condição de ser escravo fosse inerente ao africano daquele período. Para se contrapor a essa abordagem, o autor propõe a “descolonização do pensamento brasileiro” a partir da demonstração de que as potências europeias espoliaram a África e que os seres humanos que viviam nesse continente foram colocados na condição de escravos por essas mesmas potências; assim, ele propõe que se faça uma reflexão sobre a realidade africana contemporânea como resultado desse processo histórico.