Cantiga de enganar
(...)
O mundo não tem sentido.
O mundo e suas canções
de timbre mais comovido
estão calados, e a fala
que de uma para outra sala
ouvimos em certo instante
é silêncio que faz eco
e que volta a ser silêncio
no negrume circundante.
Silêncio: que quer dizer?
Que diz a boca do mundo?
Meu bem, o mundo é fechado,
se não for antes vazio.
O mundo é talvez: e é só.
Talvez nem seja talvez.
O mundo não vale a pena,
mas a pena não existe.
Meu bem, façamos de conta.
De sofrer e de olvidar,
de lembrar e de fruir,
de escolher nossas lembranças
e revertê‐las, acaso
se lembrem demais em nós.
Façamos, meu bem, de conta
– mas a conta não existe –
que é tudo como se fosse,
ou que, se fora, não era.
(...)
Carlos Drummond de Andrade, Claro Enigma.
Em Claro Enigma, a ideia de engano surge sob a perspectiva do sujeito maduro, já afastado das ilusões, como se lê no verso‐síntese “Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.” (“Legado”). O excerto de “Cantiga de enganar” apresenta a relação do eu com o mundo mediada
a) |
pela música, que ressoa em canções líricas. |
b) |
pela cor, brilhante na claridade solar. |
c) |
pela afirmação de valores sólidos. |
d) |
pela memória, que corre fluida no tempo. |
e) |
pelo despropósito de um faz‐de‐conta. |
a) Incorreta. Ainda que haja uma menção a “canções” no excerto, não é possível afirmar que a relação do eu com o mundo é mediada pela música, uma vez que esse paralelo não é o fio condutor do poema. Além disso, não há uma relação direta entre a forma de enxergar o mundo e as canções líricas.
b) Incorreta. Não há, no poema, uma relação entre a claridade solar e a forma de se relacionar com o mundo, uma vez que não há elementos que remetam a cores e luzes.
c) Incorreta. O poema trabalha, justamente, com o reconhecimento de que os valores não são sólidos (como se pode ver, por exemplo, nos versos O mundo não tem sentido; O mundo é talvez) e, por isso, é preciso olhar para eles de forma mais madura e concreta, pois o “faz-de-conta" não existe.
d) Incorreta. Não é possível afirmar que a relação do eu com o mundo aparece, no poema, mediada pela memória, uma vez que ela é apresentada apenas como uma das percepções que compõem a forma como o mundo deve ser enxergado. Além disso, a memória, no excerto, aparece como algo a ser manipulado, e, que portanto, não corre fluido no tempo.
e) Correta. O excerto revela um olhar maduro em relação ao mundo na medida em que aponta para elementos que não têm mais lugar nesse mundo – o mundo não tem sentido, está calado, é vazio, não vale a pena. Tendo isso em mente, traz como conselho “Meu bem, façamos de conta” de escolher lembranças e recontar um passado, para, logo em seguida, dizer que “a conta não existe”. Ou seja, o que se tem é o mundo como ele é – sem sentido – e isso deve ser encarado sem que se criem versões mais agradáveis da realidade.