Agora, o Manuel Fulô, este, sim! Um sujeito pingadinho, quase menino – “pepino que encorujou desde pequeno” – cara de bobo de fazenda, do segundo tipo –; porque toda fazenda tem o seu bobo, que é, ou um velhote baixote, de barba rara no queixo, ou um eterno rapazola, meio surdo, gago, glabro* e alvar**. Mas gostava de fechar a cara e roncar voz, todo enfarruscado, para mostrar brabeza, e só por descuido sorria, um sorriso manhoso de dono de hotel. E, em suas feições de caburé*** insalubre, amigavam‐se as marcas do sangue aimoré e do gálico herdado: cabelo preto, corrido, que boi lambeu; dentes de fio em meia‐lua; malares pontudos; lobo da orelha aderente; testa curta, fugidia; olhinhos de viés e nariz peba, mongol.
Guimarães Rosa, “Corpo fechado”, de Sagarana.
*sem pelos, sem barba **tolo ***mestiço
O retrato de Manuel Fulô, tal como aparece no fragmento, permite afirmar que
a) |
há clara antipatia do narrador para com a personagem, que por isso é caracterizada como “bobo de fazenda”. |
b) |
estão presentes traços de diferentes etnias, de modo a refletir a mescla de culturas própria ao estilo do livro. |
c) |
a expressão “caburé insalubre” denota o determinismo biológico que norteia o livro. |
d) |
é irônico o trecho “para mostrar brabeza”, pois ao fim da narrativa Manuel Fulô sofre derrota na luta física. |
e) |
se apontam em sua fisionomia os “olhinhos de viés” para caracterizar a personagem como ingênua. |
a) Incorreta. O narrador de Corpo Fechado é um médico da cidade grande que se encontra num povoado perdido no sertão. Nesse lugar, ele trava amizade com o sertanejo Manuel Fulô, de quem virá a ser padrinho de casamento. Considerando, portanto, o contexto do conto, não é possível afirmar que haja clara antipatia desse narrador para o personagem. Partindo-se do excerto apresentado, pode-se observar que esse narrador faz uma representação de Manuel Fulô a partir de seu ponto de vista de homem culto da cidade. Assim, verifica-se que, nesse retrato do personagem, o narrador adota uma perspectiva um tanto afetiva, evidenciada pelo uso de diminutivos (pingadinho, olhinhos), entretanto, essa afetividade é permeada por um certo sentimento de superioridade resultante da percepção da diferença social que os separa. Assim, pode-se considerar que, no fragmento, verifica-se uma atitude benevolente e condescendente do narrador em relação a um personagem que, na sua visão, seria alguém mais simples e de condição social inferior.
b) Correta. Os traços de diferentes etnias aparecem na descrição de Manuel Fulô, apresentado como um mestiço (caburé), resultado da miscigenação entre o sangue indígena aimoré e o sangue gálico (francês). Essa miscigenação de etnias reflete, de fato, uma das características definidoras de Sagarana, obra caracterizada pela mescla de elementos regionais, representados aqui pela cultura indígena e elementos estrangeiros, referidos pela menção à presença europeia na constituição do povo brasileiro.
c) Inocorreta. De fato, a expressão “caburé insalubre” denota um certo determinismo biológico, uma vez que recupera um pressuposto da teoria determinista do século XIX segundo a qual a mistura de raças geraria indivíduos mais fracos e debilitados. Não há como não relacionar a expressão presente nesse conto com a célebre frase presente em Os Sertões, de Euclides da Cunha: "O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral”. De acordo com essa sentença, o sertanejo seria forte, por ser uma “raça pura”, que não passou pelo processo de miscigenação, já o “mestiço do litoral” apresentaria uma constituição física frágil, adoentada, raquítica, neurastênica, por ser fruto da mistura de raças. A alternativa erra, contudo, ao considerar que o determinismo biológico norteia o livro, pois, embora esse aspecto apareça de modo secundário na caracterização do personagem, não é a partir dele que as ações do conto irão se desenvolver. A perspectiva adotada por Guimarães Rosa na elaboração da trama narrativa de Sagarana supera tais questões ao introduzir a realidade sertaneja a partir de uma perspectiva universal e transcendente.
d) Incorreta. Manuel Fulô é desafiado pelo valentão Targino que o havia intimado a ceder-lhe sua noiva na noite anterior ao casamento. Sendo mais fraco que o bandido, o personagem recorre ao feiticeiro Antonico das Pedras Águas que, num ritual mágico, fecha seu corpo tornando-o invulnerável a qualquer ataque. Acreditando estar protegido, Manuel desafia Targino para um duelo e o mata, eliminando, assim, o bandido que perturbava a paz daquela localidade. Logo, é incorreto afirmar que Manuel Fulô sofre derrota na luta física.
e) Incorreta. Não há nenhuma relação entre o traço da fisionomia “olhinhos de viés” com a característica psicológica da ingenuidade. Pode-se interpretar que esse modo de olhar, indireto, “torto”, expressaria um caráter dissimulado de quem procura ocultar ou ainda disfarçar suas intenções.