A certa personagem desvanecida
Um soneto começo em vosso gabo*:
Contemos esta regra por primeira,
Já lá vão duas, e esta é a terceira,
Já este quartetinho está no cabo.
Na quinta torce agora a porca o rabo;
A sexta vá também desta maneira:
Na sétima entro já com grã** canseira,
E saio dos quartetos muito brabo.
Agora nos tercetos que direi?
Direi que vós, Senhor, a mim me honrais
Gabando‐vos a vós, e eu fico um rei.
Nesta vida um soneto já ditei;
Se desta agora escapo, nunca mais:
Louvado seja Deus, que o acabei.
Gregório de Matos
*louvor **grande
Tipo zero
Você é um tipo que não tem tipo
Com todo tipo você se parece
E sendo um tipo que assimila tanto tipo
Passou a ser um tipo que ninguém esquece
Quando você penetra num salão
E se mistura com a multidão
Você se torna um tipo destacado
Desconfiado todo mundo fica
Que o seu tipo não se classifica
Você passa a ser um tipo desclassificado
Eu até hoje nunca vi nenhum
Tipo vulgar tão fora do comum
Que fosse um tipo tão observado
Você ficou agora convencido
Que o seu tipo já está batido
Mas o seu tipo é o tipo do tipo esgotado
Noel Rosa
O soneto de Gregório de Matos e o samba de Noel Rosa, embora distantes na forma e no tempo, aproximam‐se por ironizarem
a) |
o processo de composição do texto. |
b) |
a própria inferioridade ante o retratado. |
c) |
a singularidade de um caráter nulo. |
d) |
o sublime que se oculta na vulgaridade. |
e) |
a intolerância para com os gênios. |
a) Incorreta. Ainda que o soneto de Gregório de Matos esteja, claramente, ironizando o processo de composição do texto (com um trabalho de metalinguagem, o autor trata da dificuldade de criar um soneto em homenagem à “personagem desvanecida”), o mesmo não é verificado no samba de Noel Rosa, que não trabalha no nível metalinguístico.
b) Incorreta. Em nenhum dos textos se verifica uma postura de inferioridade em relação aos fatos retratados. Há, inclusive, certo tom de desvalorização dos sujeitos centrais de cada texto – o que poderia ser lido como uma postura de superioridade de ambos os eus líricos em questão.
c) Correta. No soneto de Gregório de Matos, fica evidenciada a dificuldade que o eu lírico encontra para fazer elogios à figura que deve ser louvada: o título do soneto (“A certa personagem desvanecida”) aponta para o fato de que a pessoa a ser homenageada no soneto tem uma vaidade e um orgulho grandes, a despeito disso, o eu lírico passa por todos os versos sem conseguir fazer um elogio sequer a esta personagem. De forma semelhante, no samba de Noel Rosa, tem-se a pretensa valorização de uma figura que em nada se destaca das demais: nos versos “Você é um tipo que não tem tipo / Com todo tipo você se parece” fica clara a noção de que a pessoa homenageada é um “tipo” (uma figura) bastante regular, que não apresenta nada que possa ser singularizado. Nesse sentido, ambos os textos tratam da singularidade de um caráter nulo, pois em ambos há a tentativa de exaltar pessoas que não necessariamente têm algo a ser exaltado, ou seja, são como figuras nulas, banais.
d) Incorreta. Não é correto afirmar que os textos exaltam o sublime oculto na vulgaridade, uma vez que ambos os textos partem da vulgaridade para expressar a nulidade – e não o sublime – dos personagens enaltecidos.
e) Incorreta. Não há, em nenhum dos textos, trechos que possam ser lidos como ironias à intolerância sofrida pelos gênios, pois o soneto e o samba em questão se debruçam sobre as características banais das personagens homenageadas, que não têm, justamente, genialidade alguma.