Ao analisar as formas de dominação entre homens livres na zona rural do Vale do Paraíba no século XIX, a socióloga Maria Sylvia de Carvalho Franco afirmou:
“O compadrio é uma instituição que permite essa aparente quebra de barreiras sociais entre as pessoas por ela ligadas. (...) Para que se tenha presente o quanto esse recurso foi explorado, basta lembrar o significado que ‘apadrinhar’ adquiriu na vida pública e o suporte político representado pelos ‘afilhados’. Ampliando-se as trocas do compadrio para situações sociais, compreende-se como deriva dele toda uma intrincada rede de dívidas e obrigações, infindáveis porque sempre renovadas em cada uma de suas amortizações, num processo que se regenera em cada um dos momentos em que se consome.”
FRANCO, Maria Sylvia de Carvalho. Homens livres na ordem escravocrata. São Paulo: Ática, 1974, p.78-79.
a) Qual era a principal atividade econômica desenvolvida no Vale do Paraíba no século XIX?
b) Cite um exemplo de subordinação política e um exemplo de obrigação social derivados da relação de “apadrinhamento” analisada no excerto.
c) Diferencie a dominação vigente sob o regime da escravidão da forma de dominação social exercida pelo “apadrinhamento”.
Com base no texto e no contexto histórico do séculos XIX, durante o período imperial, temos:
a) A principal atividade econômica do Vale do Paraíba no século XIX era a produção de café. A região tornou-se um dos maiores centros cafeeiros do Brasil, com vastas plantações de café que eram cultivadas principalmente por trabalhadores escravizados. O café era a principal mercadoria exportada e sustentava a economia local, sendo fundamental também para a dinâmica social e política da época.
b) O conceito de compadrio ou apadrinhamento, como analisado por Maria Sylvia de Carvalho Franco, refere-se a um sistema de trocas de favores e relações de poder que, embora se manifeste de forma aparentemente amigável ou informal, sustentava uma rede complexa de subordinação e dependência na sociedade rural do século XIX, especialmente no Vale do Paraíba. Essa rede de relações pessoais e patronais envolvia tanto subordinação política quanto obrigações sociais, sendo essencial para a manutenção das estruturas de poder local. São opções de respostas:
Exemplo de subordinação política:
Controle político nas eleições: Um exemplo claro de subordinação política derivada do apadrinhamento seria a prática dos grandes proprietários de terras ou figuras influentes da região apadrinhando eleitores ou outros políticos em troca de apoio eleitoral. Por exemplo, um fazendeiro poderoso poderia "apadrinhar" seus empregados ou pequenos proprietários de terra, oferecendo favores ou proteção em troca de votos em eleições locais ou até mesmo nas eleições provinciais e nacionais. Esse tipo de clientelismo político se traduzia em uma rede de dependência, onde os "afilhados" tinham que apoiar os interesses do padrinho, garantindo a manutenção do seu poder. Esse tipo de relação era comum nas eleições do Império, em que a elite rural usava o apadrinhamento para controlar o voto e garantir a estabilidade política de suas famílias ou de seus aliados.
Indicação para cargos públicos: Outra forma de subordinação política era a indicação para cargos públicos ou cargos administrativos. O apadrinhamento podia garantir a colocação de um "afilhado" em postos de prestígio, como na administração local, no sistema judiciário ou em funções militares. Esse sistema reforçava a lealdade política e garantida a perpetuação da elite no poder, permitindo que as decisões políticas seguissem sempre os interesses dos padrinhos e fortalecendo sua base de apoio.
Exemplo de obrigação social:
Favores sociais e financeiros: As obrigações sociais, por sua vez, englobavam aspectos do cotidiano e da vida familiar. Um exemplo seria o auxílio de um padrinho em momentos críticos, como na ajuda com custos de casamento ou funerais. Quando um padrinho assistia seu afilhado em momentos de necessidade, como o casamento de uma filha ou em situações de doença na família, criava-se uma dívida de gratidão que se renovava ao longo do tempo. Esse tipo de troca de favores sociais criava uma rede de obrigações que reforçava as relações de dependência, onde os "afilhados" tinham que demonstrar lealdade aos seus padrinhos, mantendo a hierarquia social intacta.
Apoio no campo e nas disputas territoriais: O apadrinhamento também podia envolver relações de apoio no campo, como quando um pequeno fazendeiro ou trabalhador rural contava com a ajuda de um padrinho em disputas territoriais, seja para defender suas terras, seja para garantir acesso a recursos. Esses favores frequentemente criavam uma rede de lealdade e de reciprocidade, onde o afilhado estava social e economicamente subordinado ao padrinho, de quem dependia para resolver questões cotidianas ou até mesmo para resolver conflitos com outros membros da comunidade.
Educação e oportunidades de ascensão social: Outro exemplo de obrigação social era o apoio à educação de filhos de "afilhados", ou mesmo o auxílio para que eles pudessem ascender socialmente. Isso poderia envolver o apoio de um padrinho no financiamento da educação de um jovem, o que implicava na criação de uma dívida moral, pois o afilhado e sua família teriam a obrigação de honrar esse favor por toda a vida. Além disso, a assistência em garantir melhores oportunidades de vida para os filhos dos afilhados também reforçava a rede de dependência e lealdade entre padrinhos e afilhados.
c) A dominação sob o regime da escravidão era uma forma direta e coercitiva de controle social, onde os escravizados eram tratados como propriedade, sem direitos ou autonomia. Os senhores de escravos exerciam uma dominação absoluta sobre seus cativos, controlando suas vidas de maneira física e psicológica, impondo trabalho forçado, castigos físicos e um sistema de violência institucionalizada. A subordinação era explícita, e os escravizados estavam sujeitos à autoridade e à vontade de seus senhores de forma total e irrestrita.
Já a dominação social exercida pelo apadrinhamento no contexto do Vale do Paraíba, embora também fosse uma forma de controle, se dava por meio de relações pessoais baseadas em favores e trocas. O compadrio permitia uma certa flexibilidade nas hierarquias sociais, uma vez que envolvia vínculos de amizade, reciprocidade e apoio mútuo. No entanto, mesmo com essa aparente informalidade, o sistema de apadrinhamento era profundamente enraizado em uma rede de dívidas e obrigações que mantinha a estrutura de poder e as desigualdades sociais. O apadrinhamento não era tão opressor quanto a escravidão, mas ainda assim consolidava uma dominação indireta, onde as pessoas dependiam de suas relações com figuras de autoridade para garantir sua posição na sociedade.