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Questão 0 Fuvest 2025 - 2ª fase - dia 1

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Redação

Redação Texto Dissertativo

Texto 1:

“Rubião, de cabeça, subscreveu logo uma quantia grossa, para obrigar os que viessem depois. Era tudo verdade. Era também verdade que a comissão ia pôr em evidência a pessoa de Sofia, e dar-lhe um empurrão para cima. As senhoras escolhidas não eram da roda da nossa dama, e só uma a cumprimentava; mas, por intermédio de certa viúva, que brilhara entre 1840 e 1850, e conservava do seu tempo as saudades e o apuro, conseguira que todas entrassem naquela obra de caridade”.

Machado de Assis. Quincas Borba. Capítulo XCII.

Texto 2:

As associações de indivíduos da mesma espécie constituem inumeráveis sociedades. Assim como as relações sociais, a vida é constituída por simbioses – associações duráveis e reciprocamente proveitosas entre seres de espécies diferentes.

Edgar Morin. Fraternidade. Para resistir à crueldade do mundo. Adaptado.

Texto 3:

Yhuri Cruz. Ibeji, 2022. Museu de Arte do Rio.

“Já estávamos em Uidá havia quase duas semanas quando comecei a perceber como o Akin era esperto e inteligente. Ele conhecia quase todos os donos das lojas, pois de vez em quando fazia alguns trabalhos para eles, como limpar o chão, levar recados ou entregar encomendas. Foi dele a ideia de andar comigo e com a Taiwo pelas lojas e pedir presentes em nome dos Ibêjis [assim são chamados os gêmeos entre os povos iorubás], qualquer coisa, desde que não fizesse falta (...). Quando voltamos para casa, foi porque não conseguíamos mais carregar todos os presentes que ganhamos, e a minha avó novamente ficou brava, mas, no fundo, acho que gostou. A Titilayo riu e disse que éramos mais espertos do que ela imaginava, mas que não devíamos fazer aquilo novamente porque os tempos estavam difíceis e as pessoas poderiam não ter o que dar. Como ninguém gostava de recusar presentes aos Ibêjis, acabavam gastando o que não podiam ou se desfazendo do que precisavam, sem contar que ainda tinham que economizar dinheiro para quando começasse a época das chuvas, em que quase não havia movimento no mercado, nem o que vender ou colher, e faltava trabalho para muita gente. Os rios e lagoas transbordavam, engolindo as terras e os caminhos e dificultando os negócios. O Akin disse que então só pediríamos nas casas dos ricos, dos comerciantes que vendiam gente e moravam do outro lado da cidade. O Ayodele, que tinha voltado dos campos de algodão, avisou que não era para irmos lá de jeito nenhum, pois eles nos colocariam dentro de um navio e nos mandariam como carneiros para o estrangeiro”.

Ana Maria Gonçalves. Um defeito de cor.

Texto 4: 

O mundo produz alimentos mais do que suficientes para erradicar a fome. Coletivamente, não nos faltam conhecimentos nem recursos para combater a pobreza e derrotar a fome. O que precisamos é de vontade política para criar as condições para expandir o acesso a alimentos. À luz disso, lançamos a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza e saudamos sua abordagem inovadora para mobilizar financiamento e compartilhamento de conhecimento, a fim de apoiar a implementação de programas de larga escala e baseados em evidências, liderados e de propriedade dos países, com o objetivo de reduzir a fome e a pobreza em todo o mundo. Nós convidamos todos os países, organizações internacionais, bancos multilaterais de desenvolvimento, centros de conhecimento e instituições filantrópicas a aderir à Aliança para que possamos acelerar os esforços para erradicar a fome e a pobreza, reduzindo as desigualdades e contribuindo para revitalizar as parcerias globais para o desenvolvimento sustentável.

Declaração de Líderes do G20. Rio de Janeiro, 2024. Brasil. Adaptado.

Texto 5:

“Mas se você achar

Que eu tô derrotado

Saiba que ainda estão rolando os dados

Porque o tempo, o tempo não para

Dias sim, dias não

Eu vou sobrevivendo sem um arranhão

Da caridade de quem me detesta”.

Cazuza. O tempo não para.

Texto 6:

“Porque – guarde isto! – porque o homem, por mais ignorante que seja, por mais cego, por mais bruto, gosta de ser tratado como gente.”

Ruth Guimarães. Água funda.

Considerando as ideias apresentadas nos textos e outras informações que julgar pertinentes, redija uma dissertação, na qual você exponha seu ponto de vista sobre o tema: As relações sociais por meio da solidariedade.

Instruções:

  •  A dissertação deve ser redigida de acordo com a norma padrão da língua portuguesa.
  •  Escreva com letra legível e não ultrapasse a quantidade de linhas disponíveis na folha de redação.


Comentários

Para o processo seletivo de 2025, a prova de redação da Fuvest solicita a discussão da frase-tema “As relações sociais por meio da solidariedade”. A palavra-chave “solidariedade” pode ser entendida como um ato de compaixão humana em uma situação de adversidade, o que, à primeira vista, pode ser interpretado como essencialmente bom. Contudo, a proposta problematiza tal visão (conforme será desenvolvido a seguir). Ainda sobre o tema, é fundamental notar a locução adverbial “por meio [de]”, cuja função é indicar que o candidato deveria refletir sobre como a solidariedade interfere no modo como as relações humanas se estabelecem. Assim, infere-se que a prova esperava uma postura crítica do candidato em sua abordagem sobre a solidariedade e que sua reflexão fosse direcionada para como essa característica pode permear as condutas dos indivíduos uns para como os outros.
Os textos motivadores, por sua vez, apresentam múltiplos indicadores de tal interferência, traçando caminhos argumentativos pelos quais o autor da redação pudesse trilhar em seu projeto de texto.
Para tanto, o texto 1 (em franco diálogo com a disciplina de Literatura, uma vez que a obra Quincas Borba integra a lista de leituras obrigatórias) apresenta uma cena do capítulo XCII, do romance Quincas Borba, de Machado de Assis. Na passagem, Rubião e Sofia encontram-se e, em meio a uma conversa sobre amenidades, a esposa de Cristiano Palha revela ao amigo sua intenção de criar uma “comissão de senhoras” para prestar auxílio ao estado de Alagoas, que vivia uma grave epidemia. A princípio, tal ato de solidariedade poderia ser interpretado como generosidade por parte de Sofia, contudo, vale lembrar que ela e seu esposo haviam alcançado o posto de novos ricos, mas que o dinheiro não significava plena integração à alta sociedade. Dessa forma, a personagem precisava de reconhecimento social para obter o status que desejava. A prática da solidariedade por Sofia, então, pouco tinha a ver com ajudar os afetados pela desgraça, mas com dar a ela visibilidade a aceitação em seu novo círculo social. 
Tal leitura é referendada pelo trecho “a comissão ia pôr em evidência a pessoa de Sofia, e dar-lhe um empurrão para cima.” O candidato atento ao excerto já poderia discutir o fato de que atos de suposta solidariedade muitas vezes são usados como catapultas para que determinados indivíduos recebam destaque e reconhecimento social. É possível estabelecer uma ponte entre a obra de 1891 e os dias atuais, ao levar-se em consideração a exibição intensa de atos de pretensa compaixão nas redes sociais, cuja moeda de troca é o engajamento, convertido em compartilhamentos e curtidas.  
O texto 2, de Edgar Morin, segue o movimento da coletânea de desnudar lugares-comuns sobre a solidariedade. Normalmente, acredita-se que apenas quem recebe algum tipo de ajuda do outro foi beneficiado. Contudo, o pensador francês, valendo-se de um conceito da Biologia, aponta que a vida humana também é composta por simbioses, ou seja, por associações entre os indivíduos, no caso, “reciprocamente proveitosas”. Assim, a pessoa solidária também se beneficia da solidariedade que pratica. Os exemplos da personagem Sofia e da solidariedade de rede social ilustram exatamente esse pensamento. Ainda seria possível destacar a solidariedade sazonal, quando indivíduos, muitas vezes avessos a políticas públicas que buscam justiça social, distribuem comida e objetos para os economicamente desfavorecidos, como forma de limpeza de consciência. 
Já o trecho da obra “Um defeito de cor” apresenta uma espécie de distinção entre a prática real da solidariedade - exercida exatamente por aqueles que menos possuem bens materiais, mas que são capazes de abrir mão do que têm, mesmo que isso lhes faça falta, ou mesmo de endividarem-se para ajudar o outro, – e a falsa solidariedade – daqueles que muito têm e que não estão dispostos a abdicar de seus privilégios. Logo, de um lado estão os pobres que enchem as mãos da narradora, de Taiwo e de Akin de presentes para os Ibêjis. Do outro, estão os ricos, cuja única atitude a se esperar é a de que colocassem os personagens em um navio e os mandassem à venda no estrangeiro.
A referência ao livro de Ana Maria Gonçalves poderia indicar ao candidato a possibilidade de reconhecer uma espécie de paradoxo, uma vez que aqueles que mais precisam de atos de solidariedade são também os mais disponíveis a exercê-la, enquanto aqueles que mais poderiam contribuir com os demais são os que mais querem tudo para si e, portanto, não praticam a solidariedade ou o fazem de forma interesseira. 
Por sua vez, o texto 4 lança a discussão sobre a solidariedade para uma perspectiva mais coletiva e política. O trecho de recente declaração de líderes do G20, no Rio de Janeiro, indica que a solidariedade entre as nações é uma necessidade conjuntural para erradicar problemas que há muito assolam a existência humana em determinados lugares do globo, como a pobreza e a fome. Valendo-se de tal perspectiva, o candidato poderia considerar que atos solidários não devem circunscrever-se a ações individuais, mas orientar as políticas adotadas internacionalmente. 
Por fim, os textos 5 e 6 trazem uma abordagem diferenciada para a prova, colocando em perspectiva aquele que recebe atos de solidariedade, diferentemente dos textos 1 e 3, que destacam a figura que a exerce. Ainda assim, há diálogo entre os excertos, uma vez que se mantém a problematização do tema. 
A letra de Cazuza, por exemplo, coloca a caridade como uma espécie de afronta para quem a recebe, um “arranhão”, um ato de violência, de que o eu-lírico regozija-se de não precisar viver. Nesse ponto, vale lembrar a reflexão suscitada pelos primeiros trechos da coletânea, afinal a compaixão interesseira, cujo objetivo é render reconhecimento ao “benfeitor”, desumaniza quem a recebe, transformando tal indivíduo em uma ferramenta para que o outro se destaque para seus pares ou para sua própria consciência. É possível pensar que o eu-lírico seria alvo desse tipo de situação, pois ele menciona “a caridade de quem me detesta”, ou seja, seria um ato vindo de quem não está realmente preocupado em promover a justiça ou a igualdade. 
Leituras da lista obrigatória abrem e fecham a coletânea. Para finalizar, há um pequeno trecho do romance Água Funda, de Ruth Guimarães. Nele, a narradora sentencia que todos os seres humanos, independente de quem sejam ou da situação em que estejam, gostam de ser tratados como “gente”. 
A obra em questão conta a história da fazenda Água Funda, uma monocultura escravista, que, após a Abolição, é comprada por uma usina de cana-de-açúcar. Com a mudança na administração, os trabalhadores passam a receber um novo tratamento - por parte de seus, agora, empregadores – minimante humano, o que chega a lhes causar espanto. 
Embora a estrutura social não tenha sido realmente modificada, a diferença no tratamento – à qual poderíamos chamar de solidariedade – é percebida como algo positivo pelos trabalhadores. Assim, o aluno poderia discutir que essa nova forma de relação entre empregadores e empregados foi usada para camuflar o fato de que a desigualdade social e a falta se acesso à terra, por exemplo, permaneceram. Logo, a solidariedade novamente é instrumentalizada por quem detém poder, em benefício próprio. 
Portanto, a coletânea conduz a um projeto de texto capaz de olhar o conceito de solidariedade para além da superficialidade e da idealização, lançando luz a uma visão mais crítica que, longe de descartar a importância da compaixão ou da caridade, é capaz de vislumbrar sua deturpação em contextos de assimetria de poder. Além disso, destaca-se a importância de que atos solidários sejam também políticas públicas, e não somente ações pontuais e personalizadas.