ROMANCE XXI OU DAS IDEIAS
A VASTIDÃO desses campos.
A alta muralha das serras.
As lavras inchadas de ouro.
Os diamantes entre as pedras.
Negros, índios e mulatos.
Almocafres* e gamelas.
Os rios todos virados.
Toda revirada, a terra.
Capitães, governadores,
padres, intendentes, poetas.
Carros, liteiras douradas,
cavalos de crina aberta.
A água a transbordar das fontes.
Altares cheios de velas.
Cavalhadas. Luminárias.
Sinos. Procissões. Promessas.
Anjos e santos nascendo em mãos de gangrena e lepra.
Finas músicas broslando** as alfaias das capelas.
Todos os sonhos barrocos deslizando pelas pedras.
Pátios de seixos. Escadas.
Boticas. Pontes. Conversas.
Gente que chega e que passa.
E as ideias.
(...)
Banquetes. Gamão. Notícias.
Livros. Gazetas. Querelas.
Alvarás. Decretos. Cartas.
A Europa a ferver em guerras.
Portugal todo de luto:
triste Rainha o governa!
Ouro! Ouro! Pedem mais ouro!
E sugestões indiscretas:
Tão longe o trono se encontra!
Quem no Brasil o tivera!
Ah, se D. José II
põe a coroa na testa!
Uns poucos de americanos,
por umas praias desertas,
já libertaram seu povo
da prepotente Inglaterra!
Washington. Jefferson. Franklin.
(Palpita a noite, repleta de fantasmas, de presságios... )
E as ideias.
Doces invenções da Arcádia!
Delicada primavera:
pastoras, sonetos, liras,
— entre as ameaças austeras
de mais impostos e taxas
que uns protelam e outros negam.
Casamentos impossíveis.
Calúnias. Sátiras. Essa
paixão da mediocridade
que na sombra se exaspera.
E os versos de asas douradas,
que amor trazem e amor levam...
Anarda. Nise. Marília...
As verdades e as quimeras.
Outras leis, outras pessoas.
Novo mundo que começa.
Nova raça. Outro destino.
Planos de melhores eras.
E os inimigos atentos,
que, de olhos sinistros, velam.
E os aleives***. E as denúncias.
E as ideias.
*almocafre – espécie de enxada utilizada na mineração.
**broslar – decorar um tecido, utilizando fios e/ou ornamentos.
*** aleive – acusação feita sem fundamento com o intuito de difamar; calúnia.
Cecília Meireles. Romanceiro da Inconfidência.
a) No “Romance XXI ou Das ideias”, de Romanceiro da Inconfidência, o cenário descrito contrasta com o locus amoenus, típico da poesia árcade. Transcreva um exemplo desse contraste e justifique sua escolha.
b) Ao longo do “Romance XXI ou Das ideias”, o verso “E as ideias” é várias vezes repetido. A partir das estrofes apresentadas, o que essa repetição indica para a composição do poema?
a) O tópico do “locus amoenus” alude a uma paisagem campestre e primaveril, onde reina uma natureza amena e amável que convida ao deleite amoroso. No trecho em questão, a representação desse lugar de encantos pode ser verificada na referência às “doces invenções da Arcádia”, bem como na “delicada primavera”, povoada por “pastoras, sonetos e liras”. Entretanto, a harmonia sugerida por esses versos é perturbada pela entrada do mundo social e político da colônia, ameaçada pela austeridade “de mais impostos e taxas” cobrados pela metrópole. A referência a esses elementos históricos ligados ao conflito da exploração colonial contrasta com a paisagem amena celebrada na poesia. Dessa forma, Cecília Meireles demonstra que a realidade vivida pelos poetas inconfidentes era caracterizada pelo conflito e, por isso, distante da paisagem ideal de seus poemas.
b) No “Romance XXI ou Das Ideias”, o eu lírico se empenha em reconstruir o cenário de Vila Rica da época da extração de ouro nas Minas Gerais. Esse trabalho de evocação do passado é feito, em grande medida, a partir do uso de substantivos, os quais formam um conjunto de imagens que retratam o ambiente geográfico da região – “A vastidão desses campos. A alta muralha das serras”; a exploração do ouro, como se observa em “As lavras inchadas de ouro./ Os diamantes entre as pedras.”, a presença de indígenas e afrodescendentes obrigados a trabalhar como escravos na extração do ouro: “Negros, índios e mulatos./ Almocafres* e gamelas”. A poeta evoca a vida cotidiana de Vila Rica em versos como “Cavalhadas. Luminárias./ Sinos. Procissões. Promessas”, mas, por outro lado, também alude aos conflitos decorrentes da opressão da metrópole: — entre as ameaças austeras de mais impostos e taxas que uns protelam e outros negam”.
De um modo geral, os versos do poema variam entre sete e seis sílabas métricas, o que confere regularidade ao texto, entretanto essa harmonia é rompida pela repetição, ao final das estrofes, do verso “e as ideias”, o qual conta apenas com três sílabas métricas. As ideias evocadas por esse verso aludem aos ideais iluministas de liberdade e democracia presentes nas obras dos filósofos franceses do século XVIII e no processo de independência das colônias inglesas na América do Norte, os quais vão influenciar o movimento da Inconfidência Mineira. Tendo isso em vista, a repetição desse verso mais curto interrompe a regularidade métrica do poema, da mesma forma que as ideias libertárias que circularam na região da Minas no século XVIII perturbaram a ordem estabelecida pela Metrópole e ameaçaram o poder da Coroa portuguesa, desencadeando conflitos, traições, perseguições e punições. A partir dessa repetição, Cecília Meireles evoca a força das ideias cuja repetição e veiculação tem o poder de abalar a própria história.