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Questão 1 Fuvest 2025 - 2ª fase - dia 1

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Questão 1

Romanceiro da Inconfidência

ROMANCE XXI OU DAS IDEIAS

A VASTIDÃO desses campos.

A alta muralha das serras.

As lavras inchadas de ouro.

Os diamantes entre as pedras.

Negros, índios e mulatos.

Almocafres* e gamelas.

 

Os rios todos virados.

Toda revirada, a terra.

Capitães, governadores,

padres, intendentes, poetas.

Carros, liteiras douradas,

cavalos de crina aberta.

A água a transbordar das fontes.

Altares cheios de velas.

Cavalhadas. Luminárias.

Sinos. Procissões. Promessas.

Anjos e santos nascendo em mãos de gangrena e lepra.

Finas músicas broslando** as alfaias das capelas.

Todos os sonhos barrocos deslizando pelas pedras.

Pátios de seixos. Escadas.

Boticas. Pontes. Conversas.

Gente que chega e que passa.

E as ideias.

 

(...)

Banquetes. Gamão. Notícias.

Livros. Gazetas. Querelas.

Alvarás. Decretos. Cartas.

A Europa a ferver em guerras.

Portugal todo de luto:

triste Rainha o governa!

Ouro! Ouro! Pedem mais ouro!

E sugestões indiscretas:

Tão longe o trono se encontra!

Quem no Brasil o tivera!

Ah, se D. José II

põe a coroa na testa!

Uns poucos de americanos,

por umas praias desertas,

já libertaram seu povo

da prepotente Inglaterra!

Washington. Jefferson. Franklin.

(Palpita a noite, repleta de fantasmas, de presságios... )

E as ideias.

 

Doces invenções da Arcádia!

Delicada primavera:

pastoras, sonetos, liras,

— entre as ameaças austeras

de mais impostos e taxas

que uns protelam e outros negam.

Casamentos impossíveis.

Calúnias. Sátiras. Essa

paixão da mediocridade

que na sombra se exaspera.

E os versos de asas douradas,

que amor trazem e amor levam...

Anarda. Nise. Marília...

As verdades e as quimeras.

Outras leis, outras pessoas.

Novo mundo que começa.

Nova raça. Outro destino.

Planos de melhores eras.

E os inimigos atentos,

que, de olhos sinistros, velam.

E os aleives***. E as denúncias.

E as ideias.

*almocafre – espécie de enxada utilizada na mineração.

**broslar – decorar um tecido, utilizando fios e/ou ornamentos.

*** aleive – acusação feita sem fundamento com o intuito de difamar; calúnia.

Cecília Meireles. Romanceiro da Inconfidência.

a) No “Romance XXI ou Das ideias”, de Romanceiro da Inconfidência, o cenário descrito contrasta com o locus amoenus, típico da poesia árcade. Transcreva um exemplo desse contraste e justifique sua escolha.

b) Ao longo do “Romance XXI ou Das ideias”, o verso “E as ideias” é várias vezes repetido. A partir das estrofes apresentadas, o que essa repetição indica para a composição do poema?

 



Resolução

a) O tópico do “locus amoenus” alude a uma paisagem campestre e primaveril, onde reina uma natureza amena e amável que convida ao deleite amoroso. No trecho em questão, a representação desse lugar de encantos pode ser verificada na referência às “doces invenções da Arcádia”, bem como na “delicada primavera”, povoada por “pastoras, sonetos e liras”. Entretanto, a harmonia sugerida por esses versos é perturbada pela entrada do mundo social e político da colônia, ameaçada pela austeridade “de mais impostos e taxas” cobrados pela metrópole. A referência a esses elementos históricos ligados ao conflito da exploração colonial contrasta com a paisagem amena celebrada na poesia. Dessa forma, Cecília Meireles demonstra que a realidade vivida pelos poetas inconfidentes era caracterizada pelo conflito e, por isso, distante da paisagem ideal de seus poemas.

b) No “Romance XXI ou Das Ideias”, o eu lírico se empenha em reconstruir o cenário de Vila Rica da época da extração de ouro nas Minas Gerais. Esse trabalho de evocação do passado é feito, em grande medida, a partir do uso de substantivos, os quais formam um conjunto de imagens que retratam o ambiente geográfico da região – “A vastidão desses campos. A alta muralha das serras”; a exploração do ouro, como se observa em “As lavras inchadas de ouro./ Os diamantes entre as pedras.”, a presença de indígenas e afrodescendentes obrigados a trabalhar como escravos na extração do ouro: “Negros, índios e mulatos./ Almocafres* e gamelas”. A poeta evoca a vida cotidiana de Vila Rica em versos como “Cavalhadas. Luminárias./ Sinos. Procissões. Promessas”, mas, por outro lado, também alude aos conflitos decorrentes da opressão da metrópole: — entre as ameaças austeras de mais impostos e taxas que uns protelam e outros negam”.

De um modo geral, os versos do poema variam entre sete e seis sílabas métricas, o que confere regularidade ao texto, entretanto essa harmonia é rompida pela repetição, ao final das estrofes, do verso “e as ideias”, o qual conta apenas com três sílabas métricas. As ideias evocadas por esse verso aludem aos ideais iluministas de liberdade e democracia presentes nas obras dos filósofos franceses do século XVIII e no processo de independência das colônias inglesas na América do Norte, os quais vão influenciar o movimento da Inconfidência Mineira. Tendo isso em vista, a repetição desse verso mais curto interrompe a regularidade métrica do poema, da mesma forma que as ideias libertárias que circularam na região da Minas no século XVIII perturbaram a ordem estabelecida pela Metrópole e ameaçaram o poder da Coroa portuguesa, desencadeando conflitos, traições, perseguições e punições. A partir dessa repetição, Cecília Meireles evoca a força das ideias cuja repetição e veiculação tem o poder de abalar a própria história.