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Questão 2 Fuvest 2025 - 2ª fase - dia 1

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Questão 2

Ruth Guimarães - Água Funda

O engenho é do tempo da escravatura. Seu Pedro Gomes, o morador mais antigo do lugar, ainda se lembra quando o paiol, perto da casa grande, era senzala. Antes disso, era só um rancho de tropa, na baixada, e mato virgem subindo morro. A casa grande pode-se dizer que é de ontem. Tem pouco mais de cem anos e ainda dura outros cem. (Capítulo 1)

Já viu como lagarta vira borboleta? Elas são a mesma coisa, e ao mesmo tempo não são. Cada uma é uma. Sinhá andou o caminho de diante para trás. Foi a borboleta que virou lagarta. É por isso que eu digo: ela não veio mais a Olhos D'Água, nem em corpo, nem em espírito, nem em pensamento. O corpo não é o dela. É duma pobre velha pedideira de esmola. Ela era bonitona, inteligente, orgulhosa. Quebrava, mas não vergava. A Choca já é vergada e não endireita mais. (Capítulo 13)

Ruth Guimarães. Água funda.

a) No romance Água funda, a transformação do engenho em usina indica uma passagem de tempo. Explique, a partir dos excertos, como essa transformação interfere na vida dos trabalhadores da propriedade.

b) Há, no romance, um paralelismo entre a conversão do engenho em usina e a transformação de Sinhá em Choquinha. Justifique essa afirmação.



Resolução

a) No romance “Água Funda”, a narradora informa que “o engenho é do tempo da escravatura”, evidenciando que essa estrutura produtiva está associada ao latifúndio monocultor escravista, organizado em torno do núcleo familiar que ocupava a Casa Grande e da mão de obra escravizada que ocupava a senzala. Nesse sentido, essa estrutura representa a formação colonial brasileira que perdurou por séculos e que teve especial relevância no contexto retratado na obra: o interior paulista, mais especificamente, o Vale do Paraíba.

Sinhá Carolina, proprietária da fazenda Água Funda, vende seus bens e propriedades e arrisca tudo numa aventura amorosa. Desse modo, com o fim a escravidão, a fazenda torna-se propriedade de uma Companhia, uma empresa que irá intensificar a exploração daquelas terras a partir da implantação de novas tecnologias e novos métodos de trabalho.

A partir disso, a vida dos trabalhadores passa por uma série de transformações. A princípio, a chegada da usina trouxe muitas mudanças na rotina de trabalho: o novo chefe, encarregado de fiscalizar o serviço, dispendia um tratamento mais humanizado aos empregados e os tratava “como gente”, de maneira respeitosa, fazendo-os sentir-se importantes para o desempenho da Companhia. Inclusive, os lavradores se admiravam ao ver o encarregado trabalhar junto deles numa posição de parceiro e incentivador.

De fato, com essas mudanças, há uma melhoria na organização do trabalho que, no entanto, são apenas superficiais, visto que a lógica do latifúndio monocultor e da exploração do trabalho permanece. Os trabalhadores não têm acesso à terra, são mal remunerados, enfrentam jornadas exaustivas e as condições de trabalho na usina continuam insalubres e perigosas; basta citar o episódio em que o funcionário Bebiano perde a vida ao ser tragado por uma das caldeiras onde trabalhava.

b) Iludida por um jovem aproveitador, filho de um coronel da região, Carolina se apaixona e se casa com ele. Por influência do novo marido, vende todos os seus bens, incluindo a fazenda e parte para viver uma nova vida. O rapaz a abandona e foge com todo o seu dinheiro. Sinhá se desespera e enlouquece, retornando à região de Olhos d’Água não mais como Carolina, mas como Choquinha, a velha mendiga encurvada que vive da caridade alheia. Considerando esse processo de decadência, a narradora a compara a “uma borboleta que virou lagarta”, ou seja, ela perde sua identidade, tanto do ponto de vista físico, como psicológico, deixando de ser o que era: “ela não veio mais a Olhos D'Água, nem em corpo, nem em espírito, nem em pensamento”.

A fazenda Olhos d’Água também passa por transformações significativas, pois a Companhia que a adquirira a transforma, de um engenho nos moldes coloniais, em uma grande usina de cana de açúcar, caracterizada pelo latifúndio, pela monocultura e pela profissionalização da mão de obra que, no entanto, continua sendo explorada. A modernização do campo produz profundas mudanças não só no âmbito do trabalho, como também nos modos de vida, nos valores e na cultura caipira que caracteriza a região. Nesse sentido, o universo social e cultural em torno da usina se transforma a ponto de tornar-se irreconhecível.

Tendo isso em vista, o paralelismo entre a trajetória de Carolina em Choquinha e do engenho em usina consiste na vivência de mudanças radicais e irreversíveis que as descaracterizam, a ponto de personagem e espaço se transformarem em algo totalmente novo e diferente do que eram.