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Questão 3 Fuvest 2025 - 2ª fase - dia 1

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Questão 3

Quincas Borba

Recentemente, pesquisadores identificaram a presença de Machado de Assis entre os convidados da família imperial brasileira para a missa campal realizada em comemoração à abolição da escravatura. A fotografia mostra participantes da missa ocorrida no dia 17 de maio de 1888 no Campo de São Cristóvão, Rio de Janeiro, com a presença da princesa Isabel, do Conde D’Eu e de outras celebridades do Império, além do escritor (no destaque, circulado).

Observe a fotografia e leia o trecho de Quincas Borba:

Antonio Luiz Ferreira. Missa campal celebrada em ação de graças pela Abolição da Escravatura no Brasil, 1888. São Cristóvão, Rio de Janeiro. Fonte: Acervo Instituto Moreira Salles.

“Na esquina da Rua dos Ourives deteve-o um ajuntamento de pessoas, e um préstito singular. Um homem, judicialmente trajado, lia em voz alta um papel, a sentença. Havia mais o juiz, um padre, soldados, curiosos. Mas, as principais figuras eram dois pretos. Um deles, mediano, magro, tinha as mãos atadas, os olhos baixos, a cor fula, e levava uma corda enlaçada no pescoço; as pontas do baraço iam nas mãos de outro preto. Este outro olhava para frente e tinha a cor fixa e retinta. Sustentava com galhardia a curiosidade pública. Lido o papel, o préstito seguiu pela Rua dos Ourives adiante; vinha do Aljube e ia para o Largo do Moura.

Rubião naturalmente ficou impressionado. Durante alguns segundos esteve como agora à escolha de um tílburi. Forças íntimas ofereciam-lhe o seu cavalo, umas que voltasse para trás ou descesse para ir aos seus negócios – outras que fosse ver enforcar o preto. Era tão raro ver um enforcado! Senhor, em 20 minutos está tudo findo! – Senhor, vamos tratar de outros negócios! E o nosso homem fechou os olhos, e deixou-se ir ao acaso.”

Machado de Assis. Quincas Borba.

A relação entre a obra de Machado de Assis e a questão afrobrasileira é complexa. Ao longo do século XX, houve o que a crítica chamou de um “branqueamento” da figura desse que é considerado nosso maior escritor.

a) A partir do trecho citado do romance Quincas Borba, é possível caracterizar o personagem Rubião como um apoiador do abolicionismo? Justifique sua resposta.

b) Explique a tensão entre a fotografia e o excerto, considerando a caracterização da sociedade brasileira do fim do século XIX, tal como representada no romance.

 

 

 

 



Resolução

a) O excerto citado do romance “Quincas Borba” relata um trecho em que Rubião presencia o julgamento público de um homem negro escravizado, condenado ao enforcamento. A cena chama a atenção do personagem pelo ritual em que um homem judicialmente trajado lê a sentença em voz alta, cercado por figuras importantes como um juiz, um padre e soldados. Logo em seguida, o condenado, com as mãos amarradas e uma corda em volta do pescoço é conduzido por um outro homem preto que, aparentemente, exerce o papel de carcereiro ou carrasco. Nesse momento, Rubião é tomado pela curiosidade em assistir ao enforcamento e ele hesita entre seguir a multidão para ver o espetáculo ou continuar sua rotina e ir tratar dos seus negócios. Tendo isso em vista, não é possível caracterizar Rubião como um abolicionista, visto que, em nenhum momento, o personagem demonstra indignação ou revolta em relação ao enforcamento de um homem escravizado. O conflito interno de Rubião ocorre a partir do impasse entre a necessidade de “tratar de outros negócios” e sua vontade e curiosidade de presenciar o suplício: “Era tão raro ver um enforcado! Senhor, em 20 minutos está tudo findo!”. Não há, portanto, a manifestação de nenhum sentimento humanitário ou compaixão em favor do condenado que pudesse ligar Rubião às aspirações libertárias do movimento abolicionista.

b) A ação narrativa de Quincas Borba ocorre entre os anos 1867 e 1871, período anterior, portanto, à Abolição (1888). No romance, Machado de Assis representa uma sociedade em que se observa o desenvolvimento de uma ordem capitalista - representada pelas negociatas de Cristiano Palha - dependente, porém, de uma economia alicerçada na exploração da mão de obra escrava.

Tendo em vista esse contexto, percebe-se uma tensão entre o excerto do romance e a fotografia em comemoração à Abolição da escravatura no Brasil. O trecho de Quincas Borba descreve uma cena solene em que o Estado brasileiro, na figura de seus representantes – o juiz, o padre e os soldados – julga, condena e executa um homem negro escravizado. Nesse sentido, o romance consegue representar um aspecto dessa sociedade na qual a estrutura estatal era empregada pela classe dominante a fim de manter o controle sobre os escravizados e, dessa forma, assegurar a proteção dos interesses dessa mesma classe. Há um detalhe na cena que demonstra o quanto essa ordem escravista se reproduzia até mesmo entre os estratos mais oprimidos da sociedade: os representantes do Estado condenam, mas quem executará a pena é o outro homem negro que conduz o condenado: “Este outro olhava para frente e tinha a cor fixa e retinta. Sustentava com galhardia a curiosidade pública”. Trata-se de um homem de cor retinta (mais escura) que manifesta galhardia diante da curiosidade da multidão. Esse homem executa sua função com orgulho, praticando, a mando das autoridades, a violência que os senhores não querem cometer com as próprias mãos. A menção a esse personagem é breve, mas, por meio dele, Machado demonstra a força desse sistema capaz de transformar um homem negro no opressor de outro homem com quem partilha a condição de oprimido.

A imagem da fotografia também nos apresenta uma cena solene, quase teatral: no centro, encontra-se uma mulher branca, a princesa Isabel, a qual, dias antes, havia assinado a Lei Áurea. Ela está cercada por seus convidados, a maioria homens brancos, supostamente, autoridades do Império. São poucas as mulheres presentes na cena e a grande maioria dos presentes são pessoas brancas, à exceção de dois homens negros que aparecem no canto (à direita da princesa) e do próprio Machado de Assis, escritor proeminente que, no entanto, quase desaparece por detrás dos outros convidados. A tensão que se instaura entre a fotografia e o texto literário é que, enquanto o romance demonstra como o mesmo Estado brasileiro - que defendia os interesses da classe dominante escravista, castigando e punindo os escravizados -, está agora sendo o agente da Abolição da escravatura. Tal processo ocorreu devido a uma série de condições históricas que forçaram a Monarquia a contrariar os interesses dos escravocratas e declarar a Abolição. Entretanto, tal processo ocorreu à revelia da população afrobrasileira, a qual foi excluída dessas decisões e, além disso, foi alijada da cidadania nos anos seguintes à sua libertação. Dessa forma, a presença de dois homens negros no canto da imagem ilustra a marginalização dessa população por parte do Estado brasileiro nesse contexto histórico.

Vale destacar também a imagem do próprio Machado de Assis, cuja obra retrata de maneira ácida, crítica e irônica essas contradições do período. Considerado o mais importante autor do país, ele foi, ao longo de décadas, objeto de um processo de embranquecimento que visava apagar sua identidade afrobrasileira. Esse processo pode ser notado na fotografia, na qual ele quase que desaparece, ofuscado por outros integrantes da cena – homens brancos – que ocupam posição de destaque. Esse apagamento é tão marcante que foi necessário circular a imagem do autor para que ele pudesse ser visto.