“Aconteceu num debate, num país europeu. Da assistência alguém me lançou a seguinte pergunta:
- Para si, o que é ser africano?
Falava-se, inevitavelmente, de identidade versus globalização. Respondi com uma pergunta:
- E para si, o que é ser europeu?
O homem gaguejou. Não sabia responder. Mas o interessante é que, para ele, a questão da identidade se colocava naturalmente para os africanos. Não para os europeus. Ele nunca tinha colocado a questão no espelho.
Recordo o episódio porque me parece que ele toca uma questão central: quando se fala de África, de qual África estamos falando? Terá o continente africano uma essência facilmente capturável? Haverá uma substância exótica que os caçadores de identidades possam recolher como sendo a alma africana?”
COUTO, Mia. “Um retrato sem moldura”. In: HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita à história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2008. p.11.
Ao relatar e comentar o episódio, o escritor moçambicano Mia Couto apresenta a África como
a) |
uma construção histórica proporcionada pela ação humanitária dos colonizadores europeus. |
b) |
um resultado natural da luta dos povos do continente contra a dominação estrangeira. |
c) |
uma região historicamente afetada por graves problemas demográficos e sanitários. |
d) |
um continente definido a partir de critérios políticos e geográficos deterministas. |
e) |
um mosaico composto por relações econômicas, políticas e culturais instáveis. |
a) Incorreta. O texto do escritor moçambicano Mia Couto (1955 - ) não aborda a colonização como um processo único de construção da identidade africana, mas sim como um dos fatores que influenciou e moldou essa identidade. A ênfase está na percepção europeia e na ausência de uma autoconsciência identitária por parte dos europeus.
b) Incorreta. A luta contra a dominação estrangeira é um aspecto importante da história africana, mas não define a totalidade da identidade do continente. O texto de Mia Couto busca uma compreensão mais profunda e complexa da identidade africana, que ultrapassa a experiência colonial, além de rejeitar o conceito de uma naturalidade identitária, ou seja, uma essência pronta compartilhada por todos.
c) Incorreta. Essa alternativa não aborda a questão central do texto. Embora regiões da África passem por problemas demográficos e sanitários, o argumento do excerto citado não se concentra nisso. Inclusive, essa ideia de uma África superpopulosa e marcada por condições sanitárias precárias muitas vezes representa a visão estereotipada que se produz sobre o continente, que o generaliza e o aborda apenas por meio de problemas presentes em algumas de suas regiões. A ênfase de Mia Couto, portanto, está na construção da identidade e na percepção que europeus e africanos têm dela.
d) Incorreta. O texto de Mia Couto questiona a ideia de que a África pode ser definida por critérios externos e deterministas, como os políticos e geográficos. Por conta do processo de colonização, houve um esforço europeu por definir a África por meio de critérios deterministas, reduzindo, muitas vezes, um continente diverso e complexo a uma série de estereótipos e falseamentos da realidade concreta. Ao perguntar "de qual África estamos falando?", o autor sugere que a África é um continente muito diverso e complexo para ser reduzido a uma única definição ou à busca de uma essência, ou seja, a ideia de uma identidade natural a África, fruto dos conceitos deterministas que se aplicam ao continente há séculos. Dessa forma, os referidos critérios externos são incapazes de apreender o mundo africando em sua riqueza e em suas peculiaridades.
e) Correta. A África é de fato um continente com grande diversidade cultural e política, que expressa a complexidade que Mia Couto se esforça por destacar. Embora o foco do texto não esteja na instabilidade, mas sim na construção da identidade e na percepção que europeus e africanos têm dela, podemos também entender que o processo de percepção e construção identitária existem sobre um campo movediço de experiências históricas, que estão em movimento e representam não uma permanência eterna, mas sim um terreno mutável e, por isso mesmo, instável.