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Questão 0 Unesp 2025 - 2ª fase

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Redação

Redação

TEXTO 1 

(Quino. Potentes, prepotentes e impotentes, 2003.)

1Valium: medicamento introduzido no mercado em 1963 e comumente prescrito para quadros de ansiedade. Entre 1968 e 1981, foi o medica mento mais amplamente prescrito em todo o Ocidente.

TEXTO 2 

(André Dahmer. Malvados, 2019.)

TEXTO 3

A ascensão da indústria farmacêutica e do saber médico como aquele que regula as práticas por meio da dicotomia normal/anormal contribui para a formação de novos discursos acerca da medicalização. Cada vez mais presenciamos diagnósticos precoces de doenças graves como depressão, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e quadros de ansiedade. Por conta desse estado de fluidez e rapidez em que nossa sociedade se encontra, ocorre uma significativa redução do lugar para o sofrimento e para a tristeza, que passam a ser entendidos como fazendo parte do campo da irregularidade e da anormalidade e, por consequência, passam a ser rapidamente medicalizados.

(Marcele Zucolotto et al. “Sofro, logo me medico: a medicalização da vida como enfrentamento do mal-estar”. Id on Line, 2019.)

TEXTO 4

A medicalização da vida subjetiva promovida por correntes radicais das neurociências, a partir de uma concepção dos estados afetivos como transtornos do funcionamento cerebral por deficiência de neurotransmissores, tem contribuído para a perda ou o empobrecimento de uma das qualidades fundamentais do psiquismo: o fato de que ele só existe como trabalho permanente de representação, de simbolização do real, de resolução de conflitos. As manifestações da subjetividade vão sendo progressivamente estigmatizadas como estorvo à vida produtiva e aos ideais de felicidade imediata promovidos pela cultura das sensações corporais. Consequentemente os períodos de luto, as tristezas que a vida traz, as ansiedades e angústias passam a ser encarados como anomalias intoleráveis sobre as quais se exige rápida intervenção médica em nome do retorno rápido a um funcionamento “normal”.

(Maria Rita Kehl. “Elogio do medo”. https://artepensamento.ims.com.br. Adaptado.)

TEXTO 5 

A medicalização inclui, por exemplo, entender como um problema médico o luto decorrente de perdas, o sofrimento por uma separação difícil ou a tristeza decorrente de uma perda financeira após a reforma da previdência. Esse último exemplo retrata uma dimensão perversa da medicalização, que desconsidera fenômenos sociais promotores de sofrimento psíquico.

(Marcelo Kimati. “Medicalização e sociedade contemporânea”. Revista Cult, abril de 2023.)

Com base nos textos apresentados e em seus próprios conhecimentos, escreva um texto dissertativo-argumentativo, empregando a norma-padrão da língua portuguesa, sobre o tema:

Medicalização da vida: a quem interessa?



Comentários

A proposta de redação da UNESP 2025 traz como recorte temático a seguinte pergunta: "Medicalização da vida: a quem interessa?". De forma geral, a pergunta direciona os esforços dos candidatos a uma busca crítica de possíveis agentes sociais que veem no diagnóstico precoce uma oportunidade de crescimento financeiro ou de aumento de seu poder de controle social. 

No Texto 1, uma tirinha de Quino, é retratada a cena de um protesto, com diferentes causas sendo defendidas. A arma da força policial contra a revolta da população é o medicamento Valium. A sátira proposta pelo autor é que, ao invés de armas de fogo, a distribuição de uma droga comumente prescrita para quadros de ansiedade no final do século XX foi a responsável por controlar a insatisfação populacional frente às decisões de governos de todo o Ocidente. O interesse na medicalização da vida, nesse sentido, perpassa uma noção de controle social. O indivíduo medicalizado, com a ansiedade e seus sintomas diminuídos, tem menor chance de questionar as injustiças governamentais das quais é vítima. 

Já o Texto 2, outra tirinha, agora de André Dahmer, aborda também a ideia de controle, mas voltada às crianças. Dividida em três quadros, uma personagem faz uma palestra e recebe uma pergunta. Ao afirmar que todas as crianças que correm e gritam precisam ser medicadas, é indagada acerca dessas ações, que são direitos das crianças. A resposta, “Sim. São dois direitos contra dois milhões de dólares”, deixa claro o interesse financeiro por trás da alta medicalização da vida. Quanto mais diagnósticos, maior será a taxa de crianças usando remédios e maior será o lucro das indústrias farmacêuticas. Ou seja, o caráter medicinal, na prática, não importa em certos diagnósticos médicos, uma vez que correr e brincar, ações comuns de crianças, são classificadas como sintomas de uma doença que existe apenas para favorecer a indústria farmacêutica. E esta é, justamente, a relação entre o Texto 2 e o Texto 3. 

Dando início aos textos teóricos, o terceiro menciona os diagnósticos precoces mais presentes atualmente: depressão, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e quadros de ansiedade. Esses, não coincidentemente, são diagnósticos precoces comuns para crianças, mas não só. O texto aponta como a sociedade atual, com suas práticas médicas preocupadas em conceber modelos de pessoas normais e anormais, a partir de uma ótica da produtividade, impõe a quem não se ajusta ao sistema o rótulo de “doente". No campo da produção trabalhista, na busca pela felicidade plena e irreal, vendida pelas propagandas de um marketing injusto frente à desigualdade social, não há espaço para tristeza e sofrimento. A velocidade e a fluidez de um sistema que a todo momento cria uma nova forma de ser, que requer uma energia desumana, quase tecnológica, evocam a necessidade de apagar os traços humanos das pessoas, como o sofrimento, classificando-o como depressão e, assim, patologizando a essência dos cidadãos: a humanidade. 

Seguindo a mesma linha, o Texto 4, da psicanalista Maria Rita Kehl, evoca as correntes radicais das neurociências como contribuidoras da intensa medicalização da vida. Estas enxergam os estados afetivos, que ela chama de manifestações da subjetividade, como deficiência de neurotransmissores - que são complementados, em diagnósticos corretos, por antidepressivos e ansiolíticos. No entanto, é na apreensão do real, pela simbolização deste, que a autora localiza a individualidade humana - e esse processo só é possível se o ser humano estiver em contato com suas emoções frente a conflitos, lutos, tristezas e angústias naturais da vida em sociedade e da experiência subjetiva. Se esses sentimentos não se apresentam como obstáculos para a produtividade, então o mercado pode funcionar com lucratividade máxima. Não só empresas estão interessadas nisso, mas vertentes das ciências neurológicas defendem o mesmo objetivo, desumanizando a sociedade em prol de objetivos individualistas. Atitudes que colaboram com isso recebem o privilégio da normalidade, enquanto empecilhos são marginalizados pela condição imposta de uma patologia infundada. 

Por fim, o Texto 5 ilustra o último, mas não menos importante, problema da medicalização da vida: o político. Patologizar a condição humana dos sentimentos, segundo o texto, desconsidera a influência que problemas sociais, muitas vezes causados por decisões políticas, podem ter na saúde mental dos cidadãos. A experiência diária da miséria, ou mesmo as consequências da reforma da previdência (aumentar o número de anos trabalhados para ter uma chance de se aposentar), são fatores que impedem a plena dignidade e cidadania do ser humano. Consequentemente, experiências de tristeza, ansiedade, revolta e depressão são mais prováveis. E essas, se amenizadas, são também uma forma de controle social, diminuindo protestos e insatisfações políticas.

Diante disso, é possível observar como a proposta da UNESP é coesa, uma vez que retoma o debate do Texto 1, de maneira implícita, no texto que finaliza a coletânea. Os textos de apoio dão base para que o candidato consiga, de maneira explícita ou inferencial, apontar os culpados pela medicalização da vida e seus interesses, que, de forma geral, são de controle social, enriquecimento próprio e manipulação da noção de normalidade humana. Todos, de alguma forma, fazem referência à manutenção da alta produtividade, que impede que a população tenha tempo para a reflexão e o autoconhecimento.

Além de todas as informações apresentadas, o candidato poderia também trazer conhecimentos de mundo para construir a sua argumentação a partir de uma tese que responda diretamente à pergunta do recorte temático.