Logo UNESP

Questão 26 Unesp 2025 - 2ª fase

Carregar prova completa Compartilhe essa resolução

Questão 26

João Cabral de Melo Neto Gêneros Poéticos

Para responder às questões, leia o poema “O ferrageiro de Carmona”, do poeta João Cabral de Melo Neto, publicado originalmente em 1987 no livro Crime na Calle Relator.

Um ferrageiro1 de Carmona2

que me informava de um balcão:

“Aquilo? É de ferro fundido,

foi a fôrma que fez, não a mão.

 

Só trabalho em ferro forjado,

que é quando se trabalha ferro;

então, corpo a corpo com ele;

domo-o, dobro-o, até o onde quero.

 

O ferro fundido é sem luta,

é só derramá-lo na fôrma.

Não há nele a queda de braço

e o cara a cara de uma forja.

 

Existe grande diferença

do ferro forjado ao fundido;

é uma distância tão enorme

que não pode medir-se a gritos.

 

Conhece a Giralda3 em Sevilha?

Decerto subiu lá em cima.

Reparou nas flores de ferro

dos quatro jarros das esquinas?

 

Pois aquilo é ferro forjado.

Flores criadas numa outra língua.

Nada têm das flores de fôrma

moldadas pelas das campinas.

 

Dou-lhe aqui humilde receita,

ao senhor que dizem ser poeta:

o ferro não deve fundir-se

nem deve a voz ter diarreia.

 

Forjar: domar o ferro à força,

não até uma flor já sabida,

mas ao que pode até ser flor

se flor parece a quem o diga.”

(João Cabral de Melo Neto. Poesia completa e prosa, 2008.)

1ferrageiro: negociante de ferro; no caso do poema, também ferreiro, ou seja, artesão que trabalha o ferro.

2Carmona: cidade espanhola.

3Giralda: Torre de Giralda, em Sevilha.


a) Que oposição é explorada pelo ferrageiro em sua fala?

b) A respeito do livro Crime na Calle Relator em que foi publicado o poema, o crítico Alcides Villaça assim se manifestou: “Trata-se de uma coletânea de poemas narrativos, de ‘casos’ saborosos cuja matéria [...] é filtrada pela expressão do estilo de Cabral, ganhando com isso o costumeiro tensionamento.” Em que medida “O ferrageiro de Carmona” pode ser considerado um poema narrativo?



Resolução

a) No poema “O ferrageiro de Carmona”, de João Cabral de Melo Neto, o personagem ferrageiro, em seu diálogo com o poeta, apresenta uma oposição entre o ferro fundido e o ferro forjado. Para ele, os trabalhos feitos com ferro fundido não têm qualidade ou valor artístico, visto que “foi a fôrma que fez, não a mão”, isto é, o ferro fundido não exige esforço ou técnica. Não há “luta” em sua fabricação: basta derramá-lo em uma forma e deixar que ele tome a forma do molde. O ferro forjado, porém, exige que o ferrageiro domine a técnica de moldá-lo numa espécie de “corpo a corpo” com o material, de modo a conseguir domá-lo e dobrá-lo de acordo com sua vontade. Nesse sentido, forjar o ferro é “domá-lo à força” para que ele adquira a forma desejada pelo artista e não aquela pré-estabelecida pela forma.

b) O poema “O ferrageiro de Carmona” pode ser considerado narrativo, pois apresenta alguns elementos que, comumente, caracterizam as narrativas, tais como tempo, espaço, narrador, personagens e conflito. O poema inicia com um narrador em primeira pessoa, o qual pode ser considerado uma projeção do próprio poeta João Cabral: “Um ferrageiro de Carmona que me informava de um balcão”. O uso do verbo no pretérito imperfeito situa a ação no passado; a menção ao balcão sugere um espaço que seria um ateliê ou uma loja de ferragens; os personagens são o ferrageiro e o próprio poeta que também se coloca na cena.  Após essa introdução, é o ferrageiro assume a voz narrativa e expõe um conflito: a luta contra o ferro forjado em oposição ao trabalho fácil com o ferro fundido. A fala do ferrageiro remete a outro espaço: a torre de Giralda, em Sevilha, onde se podem encontrar flores de ferro feitas com ferro fundido. Além desses elementos, o poema apresenta outras feições narrativas pois, por meio da voz do ferrageiro, somos apresentados a um narrador que compartilha sua experiência relacionada ao trabalho, bem como sua sabedoria a respeito do fazer artístico.