Para responder às questões, leia o trecho do ensaio “O eterno retorno do mesmo: tese cosmológica ou imperativo ético?” da filósofa brasileira Scarlett Marton.
E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e sequência — e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez — e tu com ela, poeirinha da poeira!” — Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: “Tu és um deus, e nunca ouvi nada mais divino!”.
Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre teu agir! Ou então, como terias de ficar de bem contigo mesmo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?
Assim escreve Nietzsche na Gaia ciência. É na forma de um desafio que introduz, em sua obra, a ideia do eterno retorno. Ao enunciar o que ele mesmo pensa a respeito, toca em dois pontos que se tornarão recorrentes em seus textos: a repetição dos acontecimentos e o movimento circular em que a mesma série de eventos ocorre. “O mais pesado dos pesos”, título do aforismo de Nietzsche, diz respeito às consequências psicológicas que o pensamento do eterno retorno pode acarretar. Afinal, o que ele provocaria em nós? Constituiria motivo de júbilo ou razão de desespero? Diante dele, como nos comportaríamos? Nós nos lançaríamos ao chão e rangeríamos os dentes? Ou abençoaríamos como portador da boa nova quem dele nos falasse? Mas qualquer atitude que viéssemos a adotar não nos libertaria do fardo que, desde então, pesaria sobre nosso agir.
(Adauto Novaes (org.). Ética, 2007. Adaptado.)
a) Quais são os referentes do pronome “eu” e do pronome “Tu” sublinhados no primeiro parágrafo?
b) Que recurso retórico é empregado reiteradamente pela filósofa brasileira no final do terceiro parágrafo? Com qual finalidade ela o emprega?
a) O referente de ambos pronomes é o demônio. No primeiro parágrafo, o narrador propõe uma suposição em que um demônio interpela seu interlocutor, abrindo aspas que representam o discurso deste demônio. O primeiro pronome, “eu”, está localizado dentro dessas aspas. Ou seja, faz referência ao demônio, que discursa nessa suposição de diálogo. Já o segundo pronome, “tu”, está presente na segunda abertura de discurso, em que o narrador, agora, simula a resposta de seu interlocutor ao demônio, chamando-o pelo pronome “tu”.
b) O recurso utilizado pela autora são as perguntas retóricas. Todas as perguntas são feitas em tom de suposição, de forma a incentivar a crítica direcionada do leitor, levando em consideração o texto de Nietzsche e a noção do eterno retorno: “o que ele provocaria em nós? Constituiria motivo de júbilo ou razão de desespero? Diante dele, como nos comportaríamos? Nós nos lançaríamos ao chão e rangeríamos os dentes? Ou abençoaríamos como portador da boa nova quem dele nos falasse?”. Todas as perguntas suscitam no leitor a imprevisibilidade das consequências do eterno retorno, o que corrobora o movimento argumentativo do próprio filósofo, que, ao longo de seu texto, propõe diversas perguntas e suposições que, no fim, abordam a imprevisibilidade de reação e a certeza sobre o reencontro com a situação já vivida.