Marília acorda
Tomo café em golinhos para não queimar meus lábios ressequidos. Como pão em pedacinhos para não engasgar com um farelo mais duro. Marília come também, mas olha o tempo todo para baixo. Parece que tem um acanhamento novo entre a gente. Termino. Olho mais uma vez pela janela. O dia está bom. Quero caminhar pelo pátio. Marília levanta, pega o andador e põe ao lado da cama. Ela sabe que eu quero levantar sozinha, e levanto. O lance de escadas, apesar de pequeno, ainda me causa problemas, mas não quero um elevador na casa e não vou tolerar descer uma rampa de cadeira de rodas. Marília abre a porta e saímos para a manhã. O dia está mais fresco do que eu imaginava. Ela pega uma manta de tricô que temos desde não sei quando e põe sobre as minhas costas. Ela aperta meus ombros com muita força, porque mesmo depois de todos esses anos, não descobriu a medida certa do carinho. Eu gosto. Porque entendo que naquele ato, naquela força está o nosso carinho.
POLESSO, N. B. Amora. Porto Alegre: Não Editora, 2015.
Nesse trecho, o drama do declínio físico da narradora transmite uma sensibilidade lírica centrada na
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necessidade de fazer adaptações na casa. |
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atmosfera de afeto fortalecido pelo convívio.
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c) |
condição de dependência de outras pessoas.
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d) |
determinação de manter a regularidade da rotina. |
e) |
aceitação das restrições de mobilidade da personagem.
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O enunciado da questão pede, de forma explícita, o cerne da sensibilidade transmitida. Com isso em mente, ao analisar as alternativas, temos:
a) Incorreta. O trecho “O lance de escadas, apesar de pequeno, ainda me causa problemas, mas não quero um elevador na casa e não vou tolerar descer uma rampa de cadeira de rodas” mostra que há, sim, certa necessidade de adaptações na casa. No entanto, a própria narradora diminui a importância delas, fazendo com que esse não seja o ponto principal pedido pelo enunciado.
b) Correta. A narradora deixa explícito que certas coisas não precisam mais ser ditas, como em “Ela sabe que eu quero levantar sozinha”. Além disso, ela também narra como, mesmo depois de tantos anos, Marília não descobriu a medida certa do carinho. Em ambas as ações, está subentendida uma relação de afeto construída ao longo do tempo, já que Marília, na primeira, deixa que a narradora se levante sozinha, já que conhece seus desejos, e, na segunda, explica como a força usada por Marília é onde reside o carinho de ambas. Esses dois exemplos deixam clara a atmosfera de afeto que o convívio, ao longo do tempo, incentivou, colocando esse ponto como central na narrativa.
c) Incorreta. Implicitamente, pode-se perceber a dependência (não admitida) da narradora. Entretanto, ela não a coloca como centro da narrativa. Diz a narradora: “Marília levanta, pega o andador e põe ao lado da cama. Ela sabe que eu quero levantar sozinha, e levanto”. Ainda que Marília ajude a narradora, demonstrando a dependência implícita, ela realiza ações sozinha.
d) Incorreta. Por mais que haja uma regularidade citada, a narração da rotina não inclui uma determinação para que isso continue. Apenas há a descrição das atitudes junto de um juízo de valor da narradora em relação a eles, por exemplo em "Eu gosto." para se referir à força com que Marília aperta seus ombros.
e) Incorreta. A narradora, na verdade, não demonstra aceitação frente às suas restrições de mobilidade, uma vez que, sabendo da necessidade de adaptações na casa, recusa que essas sejam feitas.