Falar errado é uma arte, Arnesto!
No dia 6 de agosto de 1910, Emma Riccini Rubinato pariu um garoto sapeca em Valinhos e deu a ele o nome de João Rubinato. Na escola, João não passou do terceiro ano. Não era a área dele, tinha de escolher outra. Fez o .que apareceu. Foi ser garçom, metalúrgico, até virar radialista, comediante, ator de cinema e TV, cantor e compositor. De samba.
Como tinha sobrenome italiano, João resolveu mudar para emplacar seu samba. E como ia mudar o sobrenome, mudou o nome. Virou Adoniran Barbosa. O cara falava errado, voz rouca, pinta de malandro da roça. Virou ícone da música brasileira, o mais paulista de todos, falando errado e irritando Vinicius de Moraes. que ficou de bico fechado depois de ouvir a música que Adoniran fez para a letra Bom dia, tristeza, de autoria do Poetinha. Coisa de arrepiar.
Para toda essa gente que implicava, Adoniran tinha uma resposta neoerudita: "Gosto de samba e não foi fácil, pra mim, ser aceito como compositor, porque ninguém queria nada com as minhas letras que falavam 'nóis vai', 'nóis fumo', 'nóis fizemo', 'nóis peguemo'. Acontece que é preciso saber falar errado. Falar errado é uma arte, senão vira deboche".
Ele sabia o que fazia. Por isso dizia que falar errado era uma arte. A sua arte. Escolhida a dedo porque casava com seu tipo. O Samba do Arnesto é um monumento à fala errada, assim como Tiro ao Álvaro. O erudito podia resmungar, mas o povo se identificava.
PEREIRA, E. Disponível em: www.tribunapr.com.br. Acesso em: 8 jul. 2024 (adaptado).
O "falar errado" a que o texto se refere constitui um preconceito em relação ao uso que Adoniran Barbosa fazia da língua em suas composições, pois esse uso
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marcava a linguagem dos comediantes no mesmo período. |
b) |
prejudicava a compreensão das canções pelo público. |
c) |
denunciava a ausência de estilo nas letras de canção. |
d) |
restringia a criação poética nas letras do compositor. |
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transgredia a norma-padrão vigente à época. |
a) Incorreta. Adoniran fazia um uso da língua que destoava de seus contemporâneos, considerado “incorreto” por eles, razão pela qual sofria preconceito linguístico.
b) Incorreta. A rejeição em relação às composições do sambista é justificada por um preconceito quanto a uma baixa erudição, não a uma suposta incompreensão de suas canções. Pelo contrário, na visão do autor, “falar errado é uma arte. A sua arte. Escolhida a dedo porque casava com seu tipo”. Neste caso, “seu tipo” diz respeito à origem do poeta, vindo de uma região interiorana do estado de São Paulo. Levando isso em conta, o uso “incorreto” da língua o aproxima de seu público, não o oposto.
c) Incorreta. O estilo do compositor era justamente construído pela aproximação entre a linguagem oral interiorana e a linguagem escrita das canções. Como mencionado pelo autor do texto, “o erudito podia resmungar, mas o povo se identificava”.
d) Incorreta. O uso “inadequado” da língua não restringiu a criação poética do compositor. Na verdade, o afastamento da norma-padrão foi uma escolha de Adoniran Barbosa, que desejava construir canções apelando para o uso popular da língua.
e) Correta. As canções compostas pelo sambista de fato transgrediam a norma-padrão ['nóis vai' (nós vamos), 'nóis fumo' (nós fomos), 'nóis fizemo' (nós fizemos), 'nóis peguemo' (nós pegamos)”, escolha poética feita “a dedo” por ele.