Até ali que sabia das misérias do mundo? Nada. Aquela noite do Castelo, tão simples, tão monótona, fora uma revelação! Era bem certo que a lágrlma existia, que irrompiam soluços de peitos oprimidos, que para alguém os dias não tinham cor nem a noite·tinha estrelas! Ela, criada entre beijos, no aroma dos seus jardins, com as vontades satisfeitas, o leito fofo, a mesa delicada, sentira sempre no coração um desejo sem nome, um desejo ou uma saudade absurda, a saudade do céu, como dizia o dr. Gervásio, e que não era mais que a doida aspiração da artista incipiente, que germinava no seu peito fraco.
E aquela mesma mágoa parecia-lhe agora doce e embaladora, comparando-se à outra, a Sancha, da sua idade, negra, feia, suja, levada a pontapés, dormindo sem lençóis em uma esteira, comendo em pé, apressada, os restos parcos e frios de duas velhas, vestida de algodões rotos, curvada para um trabalho sem descanso nem paga!
Por quê? Que direito teriam uns a todas as primícias e regalos da vida, se havia outros que nem por uma nesga viam a felicidade?
ALMEIDA. J. L. A falência. Disponlvel em: www.dominiopublico.gov.br. Acesso em: 28 dez. 2023.
Nesse fragmento do romance de Júlia Lopes de Almeida escrito no cenário brasileiro pós-abolição, a narradora exprime um olhar critico sobre a
a) |
desvalorização da arte produzida por mulheres. |
b) |
mudança das condições de moradia do povo negro. |
c) |
ruptura do projeto politico de emancipação feminina. |
d) |
exploração da força de trabalho da população negra. |
e) |
disputa de poder entre brancos e negros no século XIX. |
O enunciado pede especificamente o ponto sobre o qual a narradora exprime um olhar crítico. O parágrafo final promove um questionamento comparativo sobre os privilégios de uns, os brancos, em relação ao sofrimento de outros, os negros.
a) Incorreta. Por mais que haja menção à artista incipiente, não foi desenvolvida uma crítica sobre a desvalorização de produções artisticas em geral. Ainda mais considerando que o enunciado enfatiza o período pós-abolição, a alternativa correta deve conter uma crítica que ao menos passe pelo teor racial, não se restringindo à questão de gênero, como esta.
b) Incorreta. Não há uma representação de alguma condição de moradia anterior à representada no texto para que haja um olhar crítico lançado sobre essa suposta mudança.
c) Incorreta. Não há menção a um projeto político de emancipação feminina. Ainda mais considerando que o enunciado enfatiza o período pós-abolição, a alternativa correta deve conter uma crítica que ao menos passe pelo teor racial, não se restringindo à questão de gênero, como esta.
d) Correta. O final do segundo parágrafo "... curvada para um trabalho sem descanso nem paga!" deixa claro que o olhar crítico é direcionado à exploração da força de trabalho negra, que tinha que comer às pressas e em pé, sem descanso, para continuar sendo explorada.
e) Incorreta. O texto deixa claro como o povo negro sofria as consequências da escravidão. Não há uma disputa de poder sendo representada, mas, sim, o sofrimento de pessoas pretas pela opressão trabalhista de brancos.