Sempre passo nervoso quando leio minha crônica neste jornal e percebo que escapuliu a palavra "coisa" em alguma frase. Acontece que "coisa" está entre as coisas mais deliciosas do mundo.
O primeiro banho da minha filha foi embalado pela minha voz dizendo, ao fundo, "cuidado, ela ainda é uma coisinha tão pequena". "Viu só que amor? Nunca vi coisa assim". O amor que não dá conta de explicação é "a coisa" em seu esplendor e excelência. "Alguma coisa acontece no meu coração" é a frase mais bonita que alguém já disse sobre São Paulo. E quando Caetano, citado aqui pela terceira vez pra defender a dimensão poética da coisa, diz "coisa linda", nós sabemos que nenhuma palavra definiria de forma mais profunda e literária o quão bela e amada uma coisa pode ser.
"Coisar" é verbo de quem está com pressa ou tem lapsos de memória. É pra quando "mexe qualquer coisa dentro doida". E que coisa magnifica poder se expressar tal qual Caetano Veloso. Agora chega, porque "esse papo já tá qualquer coisa" e eu já tô "pra lá de Marrakech".
TATI BERNARDI. Disponível em: www.folha.uol.com.br. Acesso em: 3 jan. 2024 (adaptado).
O recurso utilizado na progressao textual para garantir a unidade temática dessa crônica é a
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intertextualidade, marcada pela citação de versos de letras de canções |
b) |
metalinguagem, marcada pela referência à escrita de crônicas pela autora. |
c) |
reiteração, marcada pela repetição de uma determinada palavra e de seus cognatos. |
d) |
conexão, marcada pela presença dos conectores lógicos "quando" e "porque" entre orações. |
e) |
pronominalização, marcada pela retomada de "minha filha" e "um namorado ruim" pelos pronomes "ela" e "lo". |
a) Correta. A alternativa A é correta pois a autora, ao discorrer sobre a preocupação que tem em relação ao uso da palavra coisa em seus textos, justifica que “‘coisa’ está entre as coisas mais deliciosas do mundo”. Como argumento, Tati Bernardi cita o exemplo da filha (“uma coisinha tão pequenina”), que é sucedido por períodos que alternam seu início com trechos de músicas de Caetano Veloso (“Alguma coisa acontece no meu coração”, “coisa linda”, “mexe qualquer coisa dentro doida”), que também fazem uso do termo, e menção explícita ao cantor (“E quando Caetano...”). Para finalizar o texto, a autora cita mais dois trechos da música de Caetano, que indicam sua impaciência com o tema (esse papo já tá qualquer coisa” e “pra lá de Marrakech”).
b) Incorreta. A referência à própria escrita da autora ocorre apenas no início do texto e, portanto, não é significativo para a progressão do texto.
c) Incorreta. A alternativa C também é adequada ao afirmar a repetição da palavra “coisa” (12 ocorrências), o que beneficia o encadeamento das ideias expostas. Em relação ao conceito de cognato, o linguista Joaquim Mattoso Câmara Junior propõe a seguinte definição: “As palavras portuguesas com a mesma raiz constituem uma família léxica e se dizem cognatas” (CÂMARA JR., 2002[1956], p. 205). Nesse sentido, os termos “coisar” e “coisinha” são cognatos que contribuem para a progressão do textual.
d) Incorreta. Os conectores “quando” e “porque” possibilitam a progressão textual, mas não garantem a “unidade temática da crônica”.
e) Incorreta. No texto não há ocorrência do pronome “lo” ou qualquer referência a “um namorado ruim”, como se afirma na alternativa.