O texto 1 a seguir reproduz a capa do romance O avesso da pele, acompanhada de uma legenda que explica a imagem. O texto 2 apresenta um trecho em que o narrador da história relembra uma conversa com o pai. O texto 3 foi publicado na ocasião em que o livro, sob a alegação de conter trechos impróprios a estudantes, foi retirado da rede pública de ensino de três estados brasileiros. Leia-os para responder às questões.
Texto 1
A pintura reproduzida na capa de O avesso da pele, intitula da Trampolim – Banhista, do artista Antonio Obá, se refere ao ocorrido em um hotel da Flórida (EUA) em 1964: ma nifestantes mergulharam em uma piscina permitida apenas para pessoas brancas, e o dono do hotel, para impedir o protesto, atirou ácido na água.
Texto 2
Você sempre dizia que os negros tinham de lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava. É necessário preservar o avesso, você me disse. Pre servar aquilo que ninguém vê. Porque não demora muito e a cor da pele atravessa nosso corpo e determina nosso modo de estar no mundo. E por mais que sua vida seja medida pela cor, por mais que suas atitudes e modos de viver estejam sob esse domínio, você, de alguma forma, tem de preservar algo que não se encaixa nisso, entende? Pois entre músculos, órgãos e veias existe um lugar só seu, isolado e único. E é nesse lugar que estão os afetos. E são esses afetos que nos mantêm vivos.
(TENÓRIO, Jeferson. O avesso da pele. São Paulo: Companhia das Letras, p. 61, 2020.)
Texto 3
(BENETT. Folha de S. Paulo, 12/03/2024, A2.)
a) Em que consiste o avesso a que o texto 2 se refere? Justifique sua resposta com elementos do texto 1 (capa e legenda) que remetem ao conteúdo do texto 2.
b) A que gênero pertence o texto 3? Indique qual foi o objetivo do seu autor e justifique mencionando uma marca verbal e uma marca não verbal presentes nesse texto.
a) O “avesso” a que o texto 2 se refere representa o núcleo de identidade, a parte de “dentro” (o avesso da pele) que é preservada pelos indivíduos contra o domínio externo num contexto de racismo, marcado pela opressão que busca desumanizar as pessoas pretas. Trata-se do lutar e do pensar (“pensar era o que nos restava”), do que se concebe por si mesmo e do modo de se estar e se constituir no mundo, algo que não é visto por ninguém de fora (“aquilo que ninguém vê”). Essa ideia de “avesso” pode ser observada no quadro, que é a capa do livro de Tenório. Nele, vê-se um personagem negro, de costas, numa posição que indica que ele está para saltar de um trampolim em uma piscina. Pela leitura da legenda, é possível entender que essa ação era proibida, ampliando, assim, o sentido do gesto, já que ingressar na água assume tanto conotações de protesto pela liberdade negada, pelo apagamento de si mesmo, quanto manutenção de seu interior, preservando-se internamente apesar da tentativa de “que sua vida seja medida pela cor”. Os manifestantes, ao enfrentarem a violência racista à qual estavam submetidos, fizeram o que é recomendado no texto 2, pois preservaram seu avesso.
b) O texto 3 pertence ao gênero charge, pois combina linguagem verbal e não verbal a fim de realizar uma crítica social, política ou cultural relacionada a eventos contemporâneos à sua publicação. Na charge, Benett critica a censura pela qual o livro estava passando, apontando suas raízes em movimentos racistas, os quais visaram colocar a obra (simbolizada pelo rapaz na ponta da prancha/trampolim), e a luta que ele simboliza, numa situação de vulnerabilidade.
É possível perceber essa crítica, pois o chargista estabelece uma relação intertextual direta com a capa do livro de Tenório, pois vê-se novamente a figura do homem negro numa prancha como a do trampolim do quadro. Contudo, na charge, tal figura não está fazendo um gesto de resistência que visa ao protesto contra o racismo, pois ela está sendo impelida a ficar em tal posição pela ameaça de uma espécie de espada que a figura com o capuz segura em posição violenta nas costas do rapaz, na qual existe um alvo que remete à bandeira do Brasil. A figura com capuz, por sua vez, remete aos trajes tipicamente usados por membros da Ku Klux Klan, seita de supremacistas brancos de extrema direita, os quais exibem por fora, pelo “avesso do avesso”, roupas que simbolizam sua tentativa de opressão alheia. O “avesso do avesso” funciona como essa inversão crítica, pois, se o livro sugere a revelação e a valorização da essência, a charge aponta como essa tentativa é negada e distorcida pelo racismo e pela censura da obra de Tenório. A repetição da palavra "avesso" também reforça a ideia de que o sistema racista não apenas oprime, mas também subverte a tentativa de preservação dessa essência mencionada no texto 2.