Logo UNICAMP

Questão 2 Unicamp 2025 - 2ª fase - dia 1

Carregar prova completa Compartilhe essa resolução

Questão 2

charges e tirinhas Vocativo linguagem verbal e não verbal

Leia a tira para responder às questões.

(Quadrinhos de João Bacellar. Fonte: Perfil @oreidascharges, no Instagram. Disponível em https://www.instagram.com/p/C5TmRnsrpxS/?img_index=. Acesso em 01/05/2024.)

a) Nessa tira, há um mecanismo linguístico de referenciação que se repete em cada cena, na fala das personagens. Especifique qual é esse mecanismo e exemplifique-o. Qual é a sua função na construção do sentido da tira?

b) A quarta cena contrasta com as outras três. Explique esse contraste e identifique três elementos textuais que a particularizam.



Resolução

a) Na fala de todas as personagens, é possível reconhecer o uso do vocativo, o qual funciona como mecanismo de referência direta e explícita aos interlocutores das falas, àqueles com quem se fala diretamente. É comumente marcado pelo isolamento com a vírgula, como ocorre nos quadros. Especificamente na construção dessa tira, seu uso marca as relações sociais e interpessoais entre os interlocutores (poder, conflito, respeito, desrespeito, xenofobia).
No primeiro quadro, o vocativo é “cambada”, usado para chamar à atenção o trabalhador que está fazendo a colheita de tomates. Tal vocábulo (cuja primeira acepção de dicionário serve para referenciar objetos pendurados) é um termo genérico e pejorativo que implica desumanização e controle coercitivo, quando associado aos outros elementos do quadro, como o homem em pé acelerando o trabalho (“sem moleza”). 
No segundo quadro, o vocativo é “Bolívia”, usado para chamar à atenção a trabalhadora e o trabalhador que estão numa cozinha no “centrão de SP” cortando os tomates. Tal vocábulo, associado ao uso de termos chulos e à expressão raivosa do homem à direita, reduz as personagens à sua nacionalidade, indicando xenofobia e desrespeito, ao mesmo tempo em que acentua a desvalorização de trabalhadores migrantes que frequentemente ocupam empregos informais e precários.
No terceiro quadro, o vocativo é “arrombado”, usado para chamar à atenção algum motorista que se esqueceu do uso da seta e provavelmente fez uma manobra que colocou o entregador em situação perigosa no trânsito. Trata-se de expressão insultuosa e vulgar que reflete a agressividade e o estresse vividos cotidianamente pelos trabalhadores de aplicativo.
No quarto quadro, o vocativo é “Vitinho”, usado para se referir e questionar o “colaborador” da startup. O uso do nome no diminutivo indica um tom afetuoso e informal, marcando proximidade e descontração da cena.

b) O contraste entre a última cena e as três primeiras evidencia a ironia e a crítica social implícitas na tira. A mensagem principal é que o conforto e a praticidade de uma parte da população são sustentados pela precarização do trabalho de outra. Enquanto as primeiras cenas mostram a face visível da exploração — marcada pela dureza e pela desumanização dos trabalhadores —, a quarta cena retrata a invisibilização dessa realidade. O consumidor (dos tomates na pizza), representado por João Vítor e Dona Paola, parece alheio às condições degradantes (dos trabalhadores que colheram, cozinharam e levaram os tomates ao rapaz) que sustentam seu estilo de vida confortável e "moderno". Essa desconexão é enfatizada pela fala da personagem: "É tão prático e tão baratinho", que minimiza o impacto humano por trás do sistema. Esse contraste é refletido na construção linguística presente na quarta cena, já que, nela, as falas são marcadamente suavizadas pelo tom adotado pelos personagens: Dona Paola faz uso do grau diminutivo de substantivos que indica afetividade, proximidade e até mesmo certa infantilização da figura de João Vítor. Em sua resposta, o rapaz mantém o tom cordial de conversa entre colegas de trabalho e recorre à estrutura semelhante ao empregar o diminutivo no adjetivo “barato”. A mesma estratégia linguística pode ser observada na descrição da cena no alto do quadro, já que se afirma que o rapaz faz “joguinhos para Android”. Todos esses usos são corroborados pelo que parece ser um ambiente tranquilo, num cenário mais confortável, no qual João Vítor come durante o expediente, sentado à sua mesa. Esses elementos contrastam diretamente com as primeiras três cenas, já que, nelas, as falas são imperativas e agressivas, marcadas pelo uso de sinal de exclamação para enfatizar os tons usados pelos personagens. Usam-se vocativos que denotam ofensas e desumanização das figuras com as quais se conversa, em alguns casos, até mesmo os termos de baixo calão aparecem, refletindo as condições árduas e estressantes às quais os trabalhadores estão submetidos. Tais elementos, combinados às situações de trabalho físico intenso, criam um contraste entre a dureza do trabalho precarizado e o trabalho urbano de escritório cercado de comodidades e de consumo.