“(...) Tão geladas as pernas e os braços e a cara que pensei em abrir a garrafa [de conhaque] para beber um gole, mas não queria chegar na casa dele meio bêbado, hálito fedendo, não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava, todo dia um bom pretexto, e fui pensando também que ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando a pé naquela chuva toda, e eu andava, estômago dolorido de fome, e eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava, roxas olheiras (...)”.
(ABREU, Caio Fernando. Além do ponto. Morangos Mofados. São Paulo: Companhia das Letras, p. 42, 2019.)
No conto “Além do ponto”, observa-se que o contraste entre o “eu”, personagem que deseja, e o “ele”, personagem imaginado,
a) |
é criado por formas verbais no pretérito imperfeito do indicativo (“queria”, “andava”) e pretérito imperfeito do subjuntivo (“pensasse”). |
b) |
é criado pelo uso de orações negativas (“eu não queria”) e do pretérito imperfeito do indicativo (“eu andava”). |
c) |
é criado pela polissemia do verbo “andar”, usado no sentido de “caminhar”/ ”deslocar-se” e no de “seguir”/“progredir”. |
d) |
é criado pelo uso de formas verbais no gerúndio (“bebendo”, “chegando”) e pela repetição de orações negativas (“eu não queria”). |
a) Correta. As formas verbais citadas evidenciam o contraste entre o narrador (personagem que deseja) e o “ele” (personagem imaginado). No trecho “mas não queria chegar na casa dele meio bêbado, hálito fedendo, não queria que ele pensasse que eu andava bebendo”, as formas do pretérito imperfeito do indicativo (queria, andava) explicitam as preocupações do narrador em ocultar do Outro a precariedade de sua condição. O verbo no pretérito perfeito do subjuntivo (pensasse) evidencia projeção do narrador a respeito das reações e impressões do seu amado imaginado. Vale destacar o valor semântico do modo indicativo que remete a um aspecto de "fato", isto é, indica a certeza do narrador acerca do que afirma. Já o sentido do verbo no modo subjuntivo aponta para um aspecto de "possibilidade", ou seja, indica as projeções do narrador para as possíveis reações do Outro. O contraste consiste justamente na realidade precária do narrador (bêbado, sujo, fedendo) e o temor a respeito da impressão que essa sua condição pode vir a despertar no outro.
b) Incorreta. Tanto as orações negativas (eu não queria) como o pretérito imperfeito do indicativo (eu andava) referem-se ao estado emotivo e à realidade do narrador, não havendo menção ao outro imaginado, por isso, tais construções não remetem à ideia de contraste.
c) Incorreta. Nos trechos “não queria que ele pensasse que eu andava bebendo, e eu andava”, “ele ia pensar que eu andava sem dinheiro, chegando a pé naquela chuva toda, e eu andava” e “eu não queria que ele pensasse que eu andava insone, e eu andava”, o verbo andar remete a uma condição, frequência ou hábito, podendo ter como sinônimo estar. Assim, “andar bebendo” significa beber com frequência, “andar sem dinheiro” remete a uma situação constante de pobreza e “andar insone” evidencia estar muitas noites sem dormir. Nesse sentido, o verbo em questão é empregado em um sentido conotativo, não fazendo referência a caminhar ou a progredir. Vale ainda destacar que a alternativa não aponta o contraste entre o "eu" e o "ele".
d) Incorreta. As formas verbais no gerúndio (bebendo e chegando) bem como as orações negativas (eu não queria) remetem às ações e ao estado subjetivo do narrador. Como não há referência a supostas ações do Outro, não há o estabelecimento de um contraste.