Para responder às questões 29 e 30, leia o conto cokwe* “A lebre e o camaleão” e o trecho de uma crônica da escritora angolana Ana Paula Tavares, escrita sobre esse conto.
*cokwe: relativo ao povo cokwe, uma etnia banta que se concentra sobretudo no nordeste de Angola.
“Dizem os antigos que a lebre e o camaleão resolveram ir pelos caminhos das caravanas levando borracha para permutar pelos belos tecidos vindos de oriente e ocidente.
Muitas vezes a acelerada lebre ultrapassou e cruzou o lento camaleão nos longos caminhos do mato, levando produtos e trazendo panos, gritando-lhe enquanto desaparecia: — Cá vou eu!
Ao desafio respondia o camaleão: — Chegarei a meu tempo.
Finalmente, a lebre, assim como adquiriu bonitos panos, também os perdeu, nos percalços da desordenada pressa, e anda para aí vestida dum cinzento escuro e sem cor.
O lento e pautado camaleão juntou farta fazenda, e tanta e tão diferente, que ainda hoje muda, a todo o instante, panos de variado colorido.”
(“A lebre e o camaleão”. Apud Ana Paula Tavares. Um rio preso nas mãos, 2019.)
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Este conto cokwe parece resolver com felicidade questões da história do continente africano e lidar com uma apreensão do real e do imaginário. A escolha das personagens da história é, em si, uma das apostas destes contadores e cultores da linguagem que, de uma vez por todas, poupam a tartaruga desta disputa vulgar e da tensão de uma corrida. À tartaruga estão reservados outros papéis, noutras histórias que lidam com os sentidos profundos da vida e da morte, do dia e da noite.
O jogo com a linguagem permite-nos perceber a história profunda das viagens que, em momentos diferentes, estiveram na origem da formação dos cokwe como grupo autônomo: origens, terras ancestrais, relação com outros grupos, adoção de novos costumes e ainda assim fidelização a um núcleo duro das origens. Sob sua superfície aparentemente simples, esta história esconde todos os mitos de fundação, rituais de passagem e a escrita da história. Tudo ali faz sentido: as personagens, a língua que falam e as vestes que as tornam atores de um complexo processo histórico. O resto é a lentidão e o desenho na areia que se faz só para ser apagado.
(Ana Paula Tavares. Um rio preso nas mãos, 2019. Adaptado.)
a) Ao se referir à tartaruga no 1º parágrafo de sua crônica, Ana Paula Tavares recorre à intertextualidade. Que gênero literário está implícito no comentário da cronista? Que recurso expressivo ligaria de modo imediato esse gênero literário ao conto cokwe?
b) Reescreva em ordem direta os trechos “Dizem os antigos que a lebre e o camaleão resolveram ir pelos caminhos das caravanas” (conto cokwe) e “À tartaruga estão reservados outros papéis” (crônica de Ana Paula Tavares).
a) O gênero literário implícito no comentário da cronista é a fábula. Sendo a personificação o recurso expressivo que liga a fábula ao conto cokwe, pode-se perceber, pelo comentário da cronista, a intertextualidade com outras fábulas, que usam a tartaruga para metaforizar a lentidão em uma corrida. Ana Paula Tavares conta como o conto cokwe esconde mitos de fundação e rituais de passagem de um povo, usando, no lugar da tartaruga, o camaleão, para indicar como a pressa não resulta em melhores resultados, sendo que, até hoje, o camaleão, sem obsessão pela velocidade, muda, a todo instante, de panos coloridos, enquanto a lebre, perdida em sua pressa, perdeu todos os bonitos panos adquiridos.
b) A ordem direta consiste na organização de uma frase na seguinte sequência: sujeito - verbo - objeto (quando houver) ou sujeito - verbo - predicativo (quando houver). Reestruturando as frases, tem-se, na ordem direta:
"Os antigos [sujeito] dizem [verbo transitivo direto] que a lebre e o camaleão resolveram ir pelos caminhos da caravana [objeto direto - oração subordinada substantiva objetiva direta]".
"Outros papéis [sujeito] estão [verbo de ligação] reservados [predicativo do sujeito] à tartaruga [complemento nominal do predicativo do sujeito]".