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Questão 7 Fuvest 2024 - 2ª fase - dia 1

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Questão 7

Alguma Poesia Intertextualidade e Interdiscursividade

Leia os textos para responder à questão.

I.

Poema de sete faces         

Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

 

As casas espiam os homens

que correm atrás de mulheres.

A tarde talvez fosse azul,

não houvesse tantos desejos.

Carlos Drummond de Andrade. Alguma Poesia.

 

II.

Anjos tronchos

Uns anjos tronchos do Vale do Silício

Desses que vivem no escuro em plena luz

Disseram: Vai ser virtuoso no vício

Das telas dos azuis mais do que azuis

 

Agora a minha história é um denso algoritmo

Que vende venda a vendedores reais

Neurônios meus ganharam novo ritmo

E mais, e mais, e mais, e mais, e mais

Caetano Veloso. Meu Coco, 2021


a) No trecho da canção, Caetano Veloso recria o célebre verso de Drummond, atualizando o seu sentido em tempos de domínio tecnológico. Comente as diferenças de significado que podem sugerir em paralelo “Vai, Carlos! ser gauche na vida” e “Vai ser virtuoso no vício”.

b) A cor azul aparece referida nas duas composições. Analise o efeito simbólico que o azul adquire em cada uma delas.



Resolução

a) O verso “Vai, Carlos! Ser gauche na vida”, do poema de Drummond, manifesta o deslocamento do poeta frente à vida. Na língua francesa, de acordo com o dicionário Michaelis, a palavra “gauche” significa “esquerda”, mas também pode significar “inábil, desprovido de graça”, de “segurança”, bem como “oblíquo, torcido e desviado”. No conjunto da poesia de Drummond, esse termo celebrizou-se por definir o aspecto problemático do poeta que, ao expor sua primeira face, expressa uma condição existencial conflituosa e confusa. Ele não se orienta pela luz da razão nem anda por caminhos aplainados por seus antecessores clássicos, mas, amaldiçoado pelo “anjo torto”, percorre a vida por estradas tortuosas e difíceis, na obscuridade das sombras. Nesse sentido, o verso em questão alude ao desajuste do eu lírico consigo mesmo, bem como à sua desarmonia e ao seu descompasso em relação ao mundo.

O verso “Vai ser virtuoso no vício”, presente na canção de Caetano Veloso, é polissêmico, pois o adjetivo virtuoso pode referir-se tanto àquele que pratica as virtudes e o bem, como àquele que é hábil em executar alguma tarefa. Considerando o primeiro sentido, é possível entender o verso como um paradoxo, visto que o sentido de “virtuoso” contraria o sentido de “vício”, o que produz uma sentença ilógica. O segundo sentido, entretanto, sugere a habilidade do poeta em praticar o vício; em outras palavras, o poeta parece ser obediente ao comando dos “anjos tronchos” de viciar-se no azul das telas de seus aparelhos tecnológicos. Nesse sentido, pode-se considerar uma conformidade do eu lírico em relação às ordens dos “anjos tronchos”.

Tendo como base os significados sugeridos pelos dois versos, identifica-se uma diferença de sentido entre eles. O verso de Drummond expressa seu desajuste frente ao mundo, sua inabilidade em adaptar-se àquilo que a realidade externa lhe impõe. Sua natureza “gauche” faria dele alguém que não se adapta à realidade vigente. O verso de Caetano também aponta para uma maldição na vida do poeta, visto que o “anjos tronchos” remetem ao “anjo torto”. Entretanto, a expressão “vai ser virtuoso no vício” alude à habilidade em praticar o vício imposto pelas telas azuis; nesse sentido, ao contrário do eu lírico drummondiano, o eu poético da letra de Caetano parece submeter-se à ordem vigente.

b) Na segunda estrofe do “Poema de sete faces”, o eu lírico parece olhar o mundo a distância. Numa relação metonímica com as casas, o “gauche” espia “os homens que correm atrás de mulheres”, projetando, assim, seus sentimentos, pulsões e desejos amorosos na paisagem urbana. Ele considera a possibilidade de que a tarde “talvez fosse azul”, “não houvesse tantos desejos”, ou seja, os desejos perturbam a tarde e impedem que ela seja azul. Nesse sentido, pode-se interpretar que a cor azul simboliza um estado de espírito de paz, calma e quietude, o qual não pode ser alcançado devido à perturbação trazida pelos desejos.

A letra de “Anjos tronchos” nos traz para o mundo contemporâneo, cada vez mais dominado pelas novas tecnologias digitais e pelas redes sociais. A expressão “vale do Silício”, região da Califórnia (EUA), faz alusão a esse contexto, pois é onde se localizam importantes empresas de alta tecnologia. Os “anjos tronchos” seriam essas próprias empresas ou ainda seus proprietários, poderosos executivos da tecnologia. Ao invés de empurrar o eu lírico para as sombras, esses anjos empurram o eu lírico para as “telas dos azuis mais do que azuis”. A cor azul referida nesses versos é um símbolo das telas de aparelhos como “tablets”, computadores e celulares e, através dessa referência, o poeta alerta para o vício que a tecnologias digitais, em especial, as redes sociais, têm criado nos cidadãos do mundo todo. Com os olhos fixos nas telas das quais emana uma luz azul que nos tira o sono, recebemos milhares de informações e imagens que moldam nossa mente, determinando quais serão nossas ideias, desejos e pensamentos. Nesse contexto, o ser humano se despersonaliza e perde sua individualidade, uma vez que passa a ser moldado por essas tecnologias criadas pelos “anjos tronchos” que, dessa forma, manipulam a sociedade de acordo com seus interesses.