Tempo de nos aquilombar
É tempo de caminhar em fingido silêncio,
e buscar o momento certo no grito,
aparentar fechar um olho evitando o cisco
e abrir escancaradamente o outro.
É tempo de fazer os ouvidos moucos
para os vazios lero-leros,
e cuidar dos passos assuntando as vias,
ir se vigiando atento, que o buraco é fundo.
É tempo de ninguém se soltar de ninguém,
mas olhar fundo na palma aberta
a alma de quem lhe oferece o gesto.
O laçar de mãos não pode ser algemas,
e sim acertada tática, necessário esquema.
É tempo de formar novos quilombos,
em qualquer lugar que estejamos
e que venham dias futuros, salve 2020
A mística quilombola persiste afirmando:
“a liberdade é uma luta constante”.
Conceição Evaristo. Jornal O Globo, 31/12/2019.
O verso “É tempo de formar novos quilombos” é um exemplo de
a) |
paradoxo, na medida em que propõe retomar o passado num contexto atual. |
b) |
metonímia, já que os quilombos fazem parte de um novo contexto cultural, sem relação com o passado. |
c) |
metáfora, representando uma união coletiva como forma de resistência social. |
d) |
antítese, ao relacionar a noção de tempo passado a uma nova configuração de futuro. |
e) |
hipérbole, apresentando o termo “quilombos” no plural para indicar o grau de difusão do movimento. |
a) Incorreta. O paradoxo é figura de estilo que apresenta conceitos inconciliáveis, o que não ocorre no verso em destaque. Embora o termo quilombo remeta ao passado, ele é trazido ao presente – é tempo – ressignificado, pelo texto, como espaço de resistência, constituindo um “novo” quilombo.
b) Incorreta. A metonímia é figura retórica em que se apresenta a relação de elementos que estabelecem uma relação de contiguidade. Na frase o vocábulo “quilombos” não marca uma relação de contiguidade com um novo contexto cultural, mas, ao contrário, com o passado, metaforizando o quilombo como lugar de resistência.
c) Correta. A metáfora é figura de estilo que apresenta uma relação de aproximação direta entre elementos de universos distintos, explorando o sentido conotativo das palavras e construções e ampliando-os. Desse modo, o termo “quilombos”, no verso – e no título do poema com “aquilombar” – não está empregado em sentido denotativo, ou seja, apenas fazendo referência ao quilombo como lugar histórico. Seu uso está ampliado para o conceito de um lugar de resistência, de união coletiva e de autonomia para a luta contra a opressão. Portanto, o formar “novos quilombos”, do verso, pede que tais espaços de união – “ninguém soltar a mão de ninguém” – e resistência – “acertada tática” –, nas novas circunstâncias do presente, sejam outra vez criados para lutar contra as adversidades sociais.
d) Incorreta. A antítese é figura estilística que apresenta elementos opostos a fim de criar contraste entre eles. No verso, não há elementos que possibilitem tal leitura, pois a noção de passado e futuro não estão apresentadas em contraste direto entre si.
e) Incorreta. A hipérbole é recurso expressivo pelo qual se faz um exagero desmedido com intuito da ênfase. O fato de o vocábulo “quilombos” ser apresentado no plural não constitui um exagero, mas mera marca de multiplicidade desses locais.