Questão 36 Fuvest 2024 - 1ª fase
“Todos os dias que depois vieram, eram tempo de doer. Miguilim tinha sido arrancado de uma porção de coisas, e estava no mesmo lugar. Quando chegava o poder de chorar, era até bom – enquanto estava chorando, parecia que a alma toda se sacudia, misturando ao vivo todas as lembranças, as mais novas e as muito antigas. Mas, no mais das horas, ele estava cansado. Cansado e como que assustado. Sufocado. Ele não era ele mesmo. Diante dele, as pessoas, as coisas, perdiam o peso de ser. Os lugares, o Mutum – se esvaziavam, numa ligeireza, vagarosos. E Miguilim mesmo se achava diferente de todos. Ao vago, dava a mesma ideia de uma vez, em que, muito pequeno, tinha dormido de dia, fora de seu costume – quando acordou, sentiu o existir do mundo em hora estranha, e perguntou assustado: – ‘Uai, Mãe, hoje já é amanhã?!’”
João Guimarães Rosa. Campo Geral.
Conforme sugere o trecho, o sofrimento perturba a noção que Miguilim tinha do tempo, porque
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a falta de acuidade visual não lhe permite distinguir as épocas. |
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o desamor ao pai o faz romper com a infância cedo demais. |
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o aprendizado da morte embaralha os planos da memória. |
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a sensação de vazio o leva a se sentir seguro no presente. |
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os dias vividos no Mutum mostram-se cada vez mais curtos. |
a) Incorreta. De fato, ao final da narrativa, descobrimos que Miguilim tem um sério problema de visão, mas o que faz com que ele embaralhe suas lembranças, misturando as recordações de diferentes épocas, é o sofrimento decorrente da morte do irmão Dito, e não a falta de acuidade visual.
b) Incorreta. Os conflitos com o pai violento e pouco amoroso são uma das causas que fazem com que Miguilim rompa precocemente com a infância, mas o foco do enunciado é a perturbação da noção que ele tinha do tempo em decorrência do sofrimento provocado pela morte de Dito. Nesse sentido, a figura paterna não participa dessa experiência vivenciada pelo personagem em relação ao tempo.
c) Correta. “Todos os dias que depois vieram, eram tempo de doer” – o trecho inicial faz referência à morte de Dito, o irmãozinho mais novo de Miguilim. A partir desse momento, o protagonista passará a vivenciar o sofrimento decorrente da perda do companheiro e da descoberta da finitude humana. O excerto citado demonstra como o aprendizado da morte embaralha os planos da memória, pois, ao chorar, Miguilim entra em contato com suas recordações de uma maneira não ordenada ou organizada, como é possível observar no seguinte trecho: “enquanto estava chorando, parecia que a alma toda se sacudia, misturando ao vivo todas as lembranças, as mais novas e as muito antigas”.
d) Incorreta. Miguilim vivencia uma sensação de vazio, como se pode observar no seguinte trecho: “Os lugares, o Mutum – se esvaziavam, numa ligeireza, vagarosos”; entretanto, não há elementos textuais que permitam afirmar que o menino se sente seguro no presente, pelo contrário, de acordo com o texto, sua sensação naquele momento é de cansaço e angústia: “no mais das horas, ele estava cansado. Cansado e como que assustado. Sufocado.”
e) Incorreta. O relato da experiência de ter dormido fora de hora e ter acordado com um estranhamento em relação ao tempo – “sentiu o existir do mundo em hora estranha, e perguntou assustado: – ‘Uai, Mãe, hoje já é amanhã?!’” – evidencia uma percepção interior e psicológica do tempo e não faz referência a um suposto dado objetivo, externo ao personagem, de que os dias no Mutum estavam cada vez mais curtos.