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Questão 67 Fuvest 2024 - 1ª fase

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Questão 67

Alguma Poesia

O SOBREVIVENTE 


Impossível compor um poema a essa altura da evolução 
                                                     [da humanidade. 
Impossível escrever um poema – uma linha que seja – de 
                                                 [verdadeira poesia. 
O último trovador morreu em 1914. 
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais. 


Há máquinas terrivelmente complicadas para as 
                                                 [necessidades mais simples. 
Se quer fumar um charuto aperte um botão. 
Paletós abotoam-se por eletricidade. 
Amor se faz pelo sem-fio. 
Não precisa estômago para digestão. 


                                                                                    Um sábio declarou a O Jornal que ainda 
                                                                                    falta muito para atingirmos um nível 
                                                                                    razoável de cultura. Mas até lá, felizmente, 
                                                                                    estarei morto. 


Os homens não melhoraram 
e matam-se como percevejos. 
Os percevejos heroicos renascem. 
Inabitável o mundo é cada vez mais habitado. 
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo 
                                                                     [dilúvio. 
(Desconfio que escrevi um poema.) 


Carlos Drummond de Andrade. Alguma Poesia, 1930. 


Entre o primeiro e o último verso, há uma aparente contradição, que, todavia, não se sustenta porque



a)

os entraves à plenitude lírica são removidos.

b)

os trovadores ainda inspiram os enamorados.

c)

a sabedoria controla o poder das máquinas.

d)

os heróis sempre ressuscitam neste mundo.

e)

a poesia resiste à negatividade do seu tempo.

Resolução

a) Incorreta. Os obstáculos à plenitude lírica não são removidos: a realidade descrita pelo eu poemático é totalmente avessa à expressão da subjetividade, uma vez que foi tomada pela violência da guerra e banalização da vida. O que se verifica é que, apesar desses entraves, a poesia acaba por resistir e encontrar seu espaço ao tecer reflexões sobre a realidade desse novo mundo.

b) Incorreta. De acordo com o poema, “O último trovador morreu em 1914. / Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.”. A referência ao ano de início da Primeira Guerra Mundial demonstra que o lirismo trovadoresco não sobreviveu à realidade devastadora do mundo moderno, tendo sido esquecido. Portanto, os trovadores não mais inspiram os enamorados.

c) Incorreta. As máquinas são apresentadas no poema como objetos supérfluos, uma vez que são “terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples”. A vida cotidiana transforma-se em algo automatizado, artificial. Paralelamente, um sábio declara que “ainda falta muito para atingirmos um nível razoável de cultura”. Percebe-se, então, uma divergência entre a sabedoria e o poder das máquinas.

d) Incorreta. Drummond refere-se ironicamente ao renascimento de “percevejos heroicos”, visto que, anteriormente, afirma que “Os homens não melhoraram e matam-se como percevejos”. Dessa forma, os pretensos “heróis” são, na verdade, seres humanos estagnados e tomados pela violência desmedida.

e) Correta. A aparente contradição se dá porque, no início do poema, o eu poemático afirma que, diante do contexto em que a humanidade se encontra, é impossível produzir um poema; por outro lado, encerra o texto declarando: "Desconfio que escrevi um poema". Entre essas duas afirmativas, descreve a realidade que o cerca, tomada pela violência da guerra, pela banalização da vida e das relações humanas perante o excesso de tecnologias, onde não há espaço para o lirismo ou para o desenvolvimento cultural. Porém, ao elaborar essa exposição de um mundo avesso à produção lírica, lança mão de recursos poéticos, como antíteses (“Inabitável o mundo é cada vez mais habitado”), comparações (“Os homens não melhoraram e matam-se como percevejos”) e metáforas (“os percevejos heroicos renascem”), e encontra espaço para expor sua subjetividade, como se verifica no penúltimo verso: “E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio”. Assim, a poesia acaba por resistir à negatividade do mundo moderno, e o poema se faz a partir das reflexões sobre esse mundo.