Texto I
“W. I. Thomas, decano dos sociólogos norte-americanos, formula um teorema básico para as ciências sociais: ‘Se os indivíduos definem as situações como reais, elas são reais em suas consequências’. (...) A primeira parte do teorema constitui uma incessante lembrança de que os homens reagem não somente aos traços objetivos de uma situação, como também, e às vezes principalmente, ao sentido que a situação tem para eles. E, assim que atribuíram algum sentido à situação, sua conduta consequente, e algumas das consequências dessa conduta, são determinadas pelo sentido atribuído. (...) A profecia que se cumpre por si mesma é, inicialmente, uma definição falsa da situação que provoca uma nova conduta, a qual, por sua vez, converte em verdadeiro o conceito originalmente falso.”
MERTON, Robert. Sociologia: Teoria e Estrutura. São Paulo: Editora Mestre Jou, 1970. p.515-517.
Texto II
“Depois de alguns anos inseridos nesta lógica de abuso e privações de distintos tipos, o detento é novamente colocado em liberdade. (...) Conseguir um trabalho não é tão fácil como parece, já que mesmo as atividades menos qualificadas e manuais (como as relacionadas a limpeza, serviços gerais, construção civil, dentre outras) demandam ‘atestado de bons antecedentes e a marca da passagem pela cadeia pode significar um indesejável pertencimento ao mundo do crime’ (Ramalho, 2018, p. 91). (...) O fator [condicionante da reincidência] mais citado, presente em 44% dos textos [sobre o tema], foi a baixa qualificação e as poucas oportunidades, sendo essa a explicação padrão de boa parte da literatura para a reincidência.”
RIBEIRO, Ludmila; OLIVEIRA, Valéria. Reincidência e reentrada na prisão no Brasil: o que os estudos dizem sobre os fatores que contribuem para essa trajetória. Artigo Estratégico 56. São Paulo: Instituto Igarapé, 2022. p.10-14.
Aplicando a noção proposta por Robert Merton, no texto I, ao cenário descrito no texto II, qual definição da situação das pessoas egressas do sistema prisional pelos possíveis empregadores no mercado de trabalho tornaria a reincidência criminal uma “profecia que se cumpre por si mesma”?
a) |
Pessoas egressas do sistema prisional têm dificuldade de conseguir emprego no mercado de trabalho porque são estigmatizadas. |
b) |
Pessoas egressas do sistema prisional têm a mesma chance de conseguir empregos que o restante da população, razão pela qual não devem ser privilegiadas pelos empregadores. |
c) |
Pessoas egressas do sistema prisional já foram condenadas e cumpriram pena pelo crime cometido e merecem a oportunidade de trabalhar para recomeçarem a vida. |
d) |
Pessoas egressas do sistema prisional voltarão a cometer crimes e, por isso, não devem ser contratadas para trabalhar. |
e) |
Pessoas egressas do sistema prisional conseguem somente trabalhos informais e de baixa remuneração por terem pouca qualificação e dificuldades para conseguir seus documentos. |
A questão apresenta um primeiro texto em que, ao citar Thomas, apresenta-se o teorema firmado na ideia de que os homens reagem a ideias, a sentidos que percebem de questões objetivas com as quais lidam. Nesse sentido, uma percepção pode ser falsa, contudo, por ter sido percebida como verdadeira, sua consequência gerada também se torna verdadeira. O segundo texto apresentado mostra um fato concreto com a dificuldade que muitos ex-presidiários enfrentam ao tentarem retornar à sociedade, pois, ao buscarem inserção no mercado de trabalho, não o conseguem por não terem o atestado de bons antecedentes.
a) Incorreta. Esta alternativa apresenta uma observação da realidade: há, de fato, uma estigmatização em relação às pessoas egressas do sistema prisional, o que faz com que elas tenham dificuldade de conseguir emprego. No entanto, essa observação não é suficiente para caracterizar uma “profecia que se cumpre por si mesma”, afinal, não há nela nenhum caráter “profético”, ou seja, não se destina a traçar um futuro para essas pessoas, apenas apresenta uma constatação em relação ao que pode ser observado na realidade.
b) Incorreta. O texto II explicita as dificuldades encontradas por pessoas egressas do sistema prisional no momento de conseguirem um emprego formal, devido à exigência comum de “atestado de bons antecedentes” (o que normalmente é negado a pessoas que já foram encarceradas). Nesse sentido, além de não ser verdadeiro que pessoas egressas do sistema prisional têm a mesma chance de conseguir emprego que o restante da população, também não é correto afirmar que essa situação se configura como uma “profecia que se cumpre por si mesma”.
c) Incorreta. Embora o texto do item aponte um olhar mais humanitário para as pessoas egressas do sistema prisional, afirmando que elas merecem a oportunidade de trabalho para o recomeço da vida, ele não mostra o que de fato ocorre, a “profecia que se cumpre por si mesma”, ou seja, o fato de que essas pessoas não recebem essa oportunidade dos empregadores, levando à reincidência criminal.
d) Correta. A organização do texto do item já se alinha ao conceito de “profecia que se cumpre por si mesma”, por vaticinar que as pessoas egressas do sistema prisional voltarão a cometer crimes e, portanto, não devem ser contratadas. Nesse sentido, ao se fazer tal pressuposição, os possíveis empregadores, de fato, não contratam tais pessoas, o que provoca que, muitas vezes, elas, por falta de opção, realmente realizem o que se pressupunha e acabem cometendo novos crimes, cumprindo a “profecia”.
e) Incorreta. O texto II aponta a pouca qualificação como parte da “explicação padrão” para os casos de reincidência. Esse fator, portanto, é visto como determinante para que as pessoas voltem a cometer crimes. No entanto, o que torna a alternativa incorreta é o fato de que essa relação não pode ser considerada uma “profecia que se cumpre por si mesma”, uma vez que ela não é apresentada como uma relação de causa e efeito, ou seja, não há elementos suficientes para que possamos compreender uma relação entre a justificativa para que as pessoas consigam pouco trabalho e o fato de elas serem reincidentes nos crimes.