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Questão 12 Enem 2023 - dia 1 - Linguagens e Ciências Humanas

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Questão 12

Pressupostos e Subentendidos

     Era um gato preto, como convinha a um cultor das boas letras, que já lera Poe traduzido por Baudelaire. Preto e gordo. E lerdo. Tão gordo e lerdo que a certa altura observei que ia perdendo inteiramente as qualidades características da raça, que são em suma o ódio de morte aos ratos. Já nem os afugentava! Os ratos de Ouro Preto são também dignos e solenes – não ria – tradicionalistas... descendentes de outros ratos que naqueles mesmos casarões presenciaram acontecimentos importantes da nossa história...No sobrado do desembargador Tomás Antônio Gonzaga, imagine o senhor uma reunião dos sonhadores inconfidentes, com os antepassados daqueles ratos a passearem pelo sótão ou mesmo pelo assoalho por entre as pernas dos homens absortos na esperança da independência nacional! E depois, os ancestres daqueles roedores que eu via agora deslizar sutilmente no meu quarto podiam ter subido pelo poste da ignomínia colonial, onde estava exposta a cabeça do Tiradentes! E quando as órbitas se descarnaram ignominiosamente, podiam até ter penetrado no recesso daquele crânio onde verdadeiramente ardera a literatura, com a simplicidade do heroísmo, a febre nacionalista...

ALPHONSUS, J. Contos e novelas. Rio de Janeiro: Imago; Brasília: lNL, 1976.


Descrevendo seu gato, o narrador remete ao contexto e a protagonista da Inconfidência para criar um efeito desconcertante centrado no



a)

desenho imaginativo do casario colonial de Ouro Preto.

b)

efeito de apagamento de limites entre ficção e realidade.

c)

vínculo estabelecido entre animais urbanos e literatura.

d)

questionamento sutil quanto à sanidade dos inconfidentes.

e)

contraste entre austeridade pomposa e imagem repugnante.

Resolução Sugerimos anulação

O desconcerto da narrativa é ocasionado pela impossibilidade de determinar o que seria realidade e ficção na construção feita pelo narrador: seriam os ratos, desprezados pelo gato preto, gordo e lerdo, solenes descendentes dos ratos que presenciaram fatos históricos? Ou teriam eles penetrados no crânio de Tiradentes após suas órbitas descarnarem? A indefinição dos fatos tem como efeito o absurdo, o que justificaria a alternativa B. No entanto, também é possível verificar no texto elementos que permitem a observar o que se afirma na alternativa E. Temos, no texto, “austeridade pomposa”, expressa no caráter culto do tutor do gato, “eu já lera Poe traduzido Baudelaire”, e nos fatos referentes à Inconfidência Mineira, como a reunião  dos “absortos na esperança da independência nacional” e os restos mortais em que “verdadeiramente ardera a literatura com a simplicidade do heroísmo”.  No entanto, tais referências contrastam com a repugnância sugerida pela imagem de ratos que “penetram no recesso de um crânio, após as órbitas descarnarem”.

a) Incorreta. A menção do sobrado colonial de Ouro Preto ocorre de modo pouco preciso, em passagens como “No sobrado do desembargador”, “passearam pelo sótão ou mesmo pelo assoalho.”. Tais descrições pontuais não conferem à narrativa um caráter perturbador.

c) Incorreta. A associação estabelecida no texto não se dá diretamente entre animais e literatura. No início do texto, afirma-se que o gato preto convinha àqueles que “cultivavam boas letras”.

d) Incorreta. O texto não exprime, ainda que de maneira sutil, um questionamento a sanidade dos inconfidentes. Há na narrativa a manifestação da admiração do narrador pelos inconfidentes, observada, por exemplo “crânio [de Tiradentes] onde verdadeiramente ardera a literatura, com a simplicidade do heroísmo”.