Enquanto estivemos entretidos com os urubus outras coisas andaram acontecendo na cidade. A Companhia baixou novas proibições, umas inteiramente bobocas, só pelo prazer de proibir (ninguém podia cuspir pra cima, nem carregar água em jacá, nem tapar o sol com peneira, como se todo mundo estivesse abusando dessas esquisitices); mas outras bem irritantes, como a de pular muro pra cortar caminho, tática que quase todo mundo que não sofria de reumatismo vinha adotando ultimamente, principalmente os meninos. E não confiando na proibição só, nem na força dos castigos, que eram rigorosos, a Companhia ainda mandou fincar cacos de garrafa nos muros. Achei isso um exagero, e comentei o assunto com mamãe. Meu pai ouviu lá do quarto e veio explicar. Disse que em épocas normais bastava uma coisa ou outra; mas agora a Companhia não podia admitir nenhuma brecha em suas ordens; se alguém desobedecesse à proibição podia se cortar nos cacos; se alguém conseguisse pular um muro quebrando o corte de alguns cacos, ou jogando um couro por cima, era apanhado pela proibição, nhoc – e fez o gesto de quem torce o pescoço de um frango.
VEIGA, J. J. Sombras de reis barbudos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
Sob a perspectiva do menino que narra, os fatos ficcionais oferecem um esboço do momento político vigente na década de 1970, aqui representado pelo
a) |
culto ao medo, infiltrado em situações do cotidiano. |
b) |
sentimento de dúvida quanto à veracidade dessas informações. |
c) |
ambiente de sonho, delineado por imagens perturbadoras. |
d) |
incentivo ao desenvolvimento econômico com a iniciativa privada. |
e) |
espaço urbano marcado por uma política de isolamento das crianças. |
a) Correta. A Companhia, citada pelo narrador, utiliza diferentes recursos para que suas imposições sejam respeitadas. Os recursos, segundo tenta explicar o pai ao filho contrariado com as proibições, são para que não exista a possibilidade de livrar-se das consequências da desobediência. Nesse sentido, observa-se que até mesmo situações banais, cotidianas (ou “bobocas”, como classifica o narrador), como “cuspir pra cima”, representavam um risco e, consequentemente, medo.
b) Incorreta. O narrador expressa aborrecimento em relação às proibições determinadas pela Companhia e considera-as um exagero. Na tentativa de amenizar a irritação do filho, o pai justifica o motivo das coerções. Portanto, explicação não está relacionada a um “sentimento de dúvida quanto à veracidade das informações”.
c) Incorreta. As proibições e castigos relatados pelo narrador não se referem a um contexto fantasioso, associado ao “ambiente de sonho”, ainda que as considerações sobre os efeitos dos cacos de vidro possam ser perturbadoras.
d) Incorreta. O texto não faz menção a qualquer tipo de desenvolvimento econômico.
e) Incorreta. Não há referências, no texto, a uma “política de isolamento das crianças”.