Ainda daquela vez pude constatar a bizarrice dos costumes que constituíam as leis mais ou menos constantes do seu mundo: ao me aproximar, verifiquei que o Sr. Timóteo, gordo e suado, trajava um vestido de franjas e lantejoulas que pentencera a sua mãe. O corpete descia-lhe excessivamente justo na cintura, e aqui e ali rebentava através da costura um pouco da carne aprisionada, esgarçando a fazenda e tornando o prazer de vestir-se daquele modo uma autêntica espécie de suplício. Movia-se ele com lentidão, meneando todas as suas franjas e abanando-se vigorosamente com um desses leques de madeira de sândalo, o que o envolvia numa enjoativa onda de perfume. Não sei direito o que colocara sobre a cabeça, assemelhava-se mais a um turbante ou a um chapéu sem abas de onde saíam vigorosas mechas de cabelos alourados. Como era costume seu também, trazia o rosto pintado - e para isto, bem como para suas vestimentas, apoderara-se de todo o guarda-roupa deixado por sua mãe, também em sua época famosa pela extravagância com que se vestia - o que sem dúvida fazia sobressair-lhe o nariz enorme, tão característico da família Meneses.
CARDOSO, L. Crônica da casa assassinada. São Paulo: Círculo do Livro, s.d.
Pela voz de uma empregada da casa, a descrição de um dos membros da família exemplifica a renovação da ficção urbana nos anos 1950, aqui observada na
a) |
opção por termos e expressões de sentido ambíguo. |
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crítica social inspirada pelo convívio com os patrões. |
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descrição impressionista do fetiche do personagem. |
d) |
presença de um foco narrativo de caráter impreciso. |
e) |
ambiência de mistério das relações familiares. |
a) Incorreta. O excerto não explora termos ou expressões com sentido ambíguo, mas está centrado na descrição do Sr. Timóteo e de como se vestia com elementos do guarda-roupas de sua mãe.
b) Incorreta. Embora a narradora seja uma empregada descrevendo um membro da família para a qual trabalhava, não há, no excerto, elementos que revelem alguma crítica social em sua relação com os patrões.
c) Correta. O excerto é estruturado em torno da descrição de um hábito peculiar do Sr. Timóteo: a utilização de roupas, adereços e maquiagem que pertenceram a sua mãe. Tal costume é apontado pela narradora como uma “bizarrice”, e pode ser interpretado como uma espécie de fetiche (para a psicologia, um objeto ou situação específica que causa excitação ou desejo sexual), fato corroborado pela empregada ao afirmar que havia um "prazer de vestir-se daquele modo". Ao longo dessa descrição, identifica-se o estilo impressionista, já que a narradora enfatiza suas percepções perante o que vê, destacando aspectos grotescos como o corpo “gordo e suado”, o corpete que "descia-lhe excessivamente justo na cintura, e aqui e ali rebentava através da costura um pouco da carne aprisionada, esgarçando a fazenda", as "vigorosas mechas de cabelos alourados" e o "nariz enorme". Além disso, explora outras impressões sensoriais, como a olfativa, ao descrever o leque "de madeira de sândalo, o que o envolvia numa enjoativa onda de perfume".
d) Incorreta. Apesar de, no excerto apresentado, não ser explicitado que a narradora é uma empregada da família Meneses, o foco são impressões do narrador a respeito do costume de Sr. Timóteo apropriar-se do guarda-roupas de sua mãe. Sendo assim, não se pode afirmar que haja alguma imprecisão no foco narrativo.
e) Incorreta. O excerto não faz menção às relações entre os membros da família Meneses. Sabe-se apenas que o Sr. Timóteo tinha o costume de utilizar as roupas, adereços e maquiagem deixados por sua mãe. Dessa forma, não é possível afirmar que haja algum mistério relacionado ao convívio entre os familiares citados.