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Questão 44 Enem 2023 - dia 1 - Linguagens e Ciências Humanas

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Questão 44

textos literários

Mais iluminada que outras

    Tenho dois seios, estas duas coxas, duas mãos que me são muito úteis, olhos escuros, estas duas sobrancelhas que preencho com maquiagem comprada por dezanove e noventa e orelhas que não aceitam bijuterias. Este corpo é um corpo faminto, dentado, cruel, capaz e violento. Movo os braços e multidões correm desesperadas. Caminho no escuro com o rosto para baixo, pois cada parte isolada de mim tem sua própria vida e não quero domá-las. Animal da caatinga. Forte demais. Engolidora de espadas e espinhos.

    Dizem e eu ouvi, mas depois também li, que o estado do Ceará aboliu a escravidão quatro anos antes do restante do país. Todos aqueles corpos que eram trazidos com seus dedos contados, seus calcanhares prontos e seus umbigos em fogo, todos eles foram interrompidos no porto. Um homem - dizem e eu ouvi e depois também li - liderou o levante. E todos esses corpos foram buscar outros incômodos. Foram ser incomodados.

ARRAES, J . Redemoinho em dia quente. São Paulo: Alfaguara. 2019


Nesse texto, os recursos expressivos usados pela narradora



a)

revelam as marcas da violência de raça e de gênero na construção da identidade.

b)

questionam o pioneirismo do estado do Ceará no enfrentamento à escravidão.

c)

reproduzem padrões estéticos em busca da valorização da autoestima feminina.

d)

sugerem uma atmosfera onírica alinhada ao desejo de resgate da espiritualidade.

e)

mimetizam, na paisagem, os corpos transformados pela violência da escravidão.

Resolução

a) Correta. O texto “Mais iluminada que outros” é construído em primeira pessoa, tendo como foco as impressões e pensamentos da narradora. Ao longo do conto, ela descreve-se como uma mulher forte: “Este corpo é um corpo faminto, dentado, cruel, capaz e violento (...) Animal da caatinga. Forte demais. Engolidora de espadas e espinhos”. Tal descrição foge da figura idealizada de mulher, popularmente vista como frágil e desprotegida, concepção atravessada pelo machismo estrutural. Nesse sentido, é possível supor que o machismo impactou na construção identitária dessa mulher, a qual precisou enrijecer-se como um ato de proteção. Situação semelhante pode ser notada na violência racial. No parágrafo seguinte, Arraes narra que tomou conhecimento de que “o estado do Ceará aboliu a escravidão quatro anos antes do restante do país”. Isso foi possível não devido à benevolência dos escravagistas, mas a um levante liderado por um homem escravizado. Em sua reflexão, a narradora aponta que, devido ao motim, “...todos esses corpos foram buscar outros incômodos. Foram ser incomodados”. Isto é, é inegável que a violência racial impactou na construção da identidade desses sujeitos, os quais tiveram que lidar os outros incômodos decorrentes do acontecimento.

b) Incorreta. Não há questionamento acerca do pioneirismo do estado do Ceará em abolir a escravidão.

c) Incorreta. Não há reprodução dos padrões estéticos. Pelo contrário, a narradora descreve-se de maneira oposta ao padrão comumente relacionado à figura feminina.

d) Incorreta. Não há atmosfera onírica no conto, nem mesmo qualquer resgate da espiritualidade.

e) Incorreta. O verbo “mimetizar” caracteriza o ato de tomar a forma ou a estrutura de outro organismo ou do ambiente por meio do mimetismo. Não é o que ocorre no conto, uma vez que os corpos transformados pela violência são reconstruídos, como o endurecimento descrito pela narradora. Assim, é inadequado afirmar que tais corpos assumem um disfarce no ambiente.