TEXTO I
Gerineldo dorme porque já está conformado com o seu mundo. Porque já sabe tudo o que lhe pode acontecer após haver submetido todos os objetos que o rodeiam a um minucioso inventário de possibilidades. Seu apartamento, mais que um apartamento, é uma teoria de sorte e de azar. Melhor que ninguém, Gerineldo conhece o coeficiente da dilatação de suas janelas e mantém marcado no termômetro, com uma linha vermelha, o ponto em que se quebrarão os vidros, despedaçados em estilhaços de morte. Sabe que os arquitetos e os engenheiros já previram tudo, menos o que nunca já aconteceu.
MÁRQUES, G. G. O pessimista. In: Textos do Caribe. Rio de Janeiro: Record, 1981.
TEXTO II
A situação é o sujeito inteiro (ele não é nada a não ser a sua situação) e é também a coisa inteira (nunca há mais nada senão as coisas). É o sujeito a elucidar as coisas pela sua própria superação, se assim quisermos; ou são as coisas a reenviar ao sujeito a imagem dele. É a total facticidade, a contingência absoluta do mundo, do meu nascimento, do meu lugar, do meu passado, dos meus redores e é a minha liberdade sem limites que faz com que haja para mim uma facticidade.
SARTRE, J.-P. O ser e o nada: ensaio de ontologia fenomenológica. Petrópolis: Vozes, 1997 (adaptado).
A postura determinista adotada pelo personagem Gerineldo contrasta com a ideia existencialista contida no pensamento filosófico de Sartre porque
a) |
evidencia a manifestação do inconsciente. |
b) |
nega a possibilidade de transcendência. |
c) |
contraria o conhecimento difuso. |
d) |
sustenta a fugacidade da vida. |
e) |
refuta a evolução biológica. |
A questão apresenta mais de um item que poderia ser assinalado como verdadeiro e não há nenhuma alternativa que possa ser considerada integralmente correta. Porém, apontaremos a redação que nos parece mais adequada com: 1) os textos apresentados; 2) o enunciado; 3) a teoria do autor.
Vejamos, mais de perto, esses tópicos:
1) Os textos apresentados são dois: um de autoria de Gabriel García Márquez, que apresenta uma personagem marcada pelo determinismo (segundo o enunciado); ou em estado de dormência (segundo o próprio texto). No segundo texto, há uma discussão, feita por Sartre, sobre aquilo que ele chamou de “liberdade situada”;
2) O enunciado menciona o determinismo e o existencialismo, localizando o debate filosófico no campo ético, não epistêmico;
3) A teoria do autor, considerando o que pede o enunciado, sabidamente rejeita a ideia de inconsciente, uma vez que ela poderia ser usada como subterfúgio para a irresponsabilidade diante da existência.
Feitas essas considerações, vejamos as alternativas.
a) Correta. A postura da personagem - determinista, segundo o enunciado, e de dormência, segundo o texto – apontam para a inconsciência. “Evidencia a manifestação do inconsciente”, como coloca o item? Em nossa opinião, não exatamente (e já mencionamos que nenhuma redação é, aqui, integralmente correta). Porém, o estado de inconsciência é criticado pelo existencialismo sartreano. O próprio texto II aponta: “é o sujeito a elucidar as coisas pela sua própria superação”. Sabemos que a argumentação está longe de ser irrefutável, mas procuraremos mostrar que os itens seguintes, no contexto do que pede o exercício, parecem, menos ainda, defensáveis.
b) Incorreta. O capítulo 3 da segunda parte da obra O Ser e o Nada, de Jean-Paul Sartre, intitula-se “A Transcendência”. Por óbvio, esse é um indicativo de que o autor traz, para si, esse debate. Justificativas, inclusive, poderiam ser dadas no sentido de apontar esse item como correto. Porém, o debate sobre transcendência feito pelo autor situa-se no campo epistemológico, uma vez que se relaciona à sua teoria fenomenológica – isto é, sua teoria entre a interação do mundo “real” e a representação transcendental, que a consciência faz desse mesmo mundo, no intuito de conhecê-lo. Dito de outro modo: o debate está fora do escopo pedido no enunciado (o existencialismo). Só há um debate transcendental, em Sartre, quando o enquadramento é a fenomenologia, na esteira da tradição heideggeriana. Ademais, vejamos: o texto II, de Sartre, menciona a “facticidade”, termo que, na linha existencialista, denota o fato, o “que está aí” para o Ser viver.
c) Incorreta. Esse é outro item que poderia ser discutido com profundidade e em perspectivas diferentes. Poderíamos defender, por exemplo, que a fenomenologia sartreana se presta a pensar o conhecimento de forma difusa, em contraposição à concepção “métrica”, quase positivista, apresentada no texto I. Porém, em nosso entender, não precisamos ir tão longe, pelo mesmo motivo apresentado no item “b”: não é esse o escopo do enunciado. Uma vez que falamos em existencialismo, estamos a discutir assuntos do campo da ética, e não do campo da gnosiologia.
d) Incorreta. No capítulo 2 da segunda parte da obra O Ser e o Nada, Jean Paul Sartre discute a temporalidade. Em suma, ele faz uma crítica às categorias tradicionais de tempo e tal crítica pode ser entendida como crítica à fugacidade. Isso, entretanto, não podemos afirmar que se encontra “sustentado” no texto.
e) Incorreta. Uma das expressões do determinismo é o de origem biológica, mas ela não se encontra presente no texto I, de modo que a alternativa está absolutamente fora do escopo da questão.