Eu poderia concluir que a raiva é um pensamento, que estar com raiva é pensar que alguém é detestável, e que esse pensamento, como todos os outros assim como Descartes o mostrou , não poderia residir em nenhum fragmento de matéria. A raiva seria, portanto, espírito. Porém, quando me volto para minha própria experiência da raiva, devo confessar que ela não estava fora do meu corpo, mas inexplicavelmente nele.
MERLEAU-PONTY, M. Quinta conversa: o homem visto de fora. São Paulo: Martins Fontes, 1948 (adaptado).
No que se refere ao problema do corpo, a filosofia cartesiana apresenta-se como contraponto ao entendimento expresso no texto por
a) |
apresentar uma visão dualista. |
b) |
confirmar uma tese naturalista. |
c) |
demonstrar uma premissa realista. |
d) |
sustentar um argumento idealista. |
e) |
defender uma posição intencionalista. |
As provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) são praticamente as únicas no país que utilizam textos do filósofo francês Merleau-Ponty para montarem suas questões. Porém, nunca se cobra uma especificidade desse autor, ou seja, um pensamento próprio; sua teoria. Em mais de uma oportunidade, por exemplo, o Enem já utilizou textos do livro O Filósofo e sua sombra. Nessas oportunidades, fez com que os estudantes pensassem sobre as características da filosofia e, mais ainda, sobre a história da filosofia e a atividade do próprio filósofo. Com textos de Merleau-Ponty, as questões sempre foram muitos interessantes, e sempre exigindo competências e habilidades de leitura, comparação e valorização da cultura conceitual ocidental.
Dessa vez, exigiu-se leitura de excerto contido no artigo “Quinta conversa: o homem visto de fora”. E o resumo das ideias do autor, para fins didáticos, poderíamos expressar da seguinte maneira: o homem visto de fora é o mesmo visto de dentro. A paráfrase, aqui, sintetiza a fenomenologia de Ponty: o humano é o seu corpo; uno; inseparável. Não por acaso, o texto apresentado aos candidatos e candidatas foi: “Eu poderia concluir que a raiva é um pensamento, que estar com raiva é pensar que alguém é detestável, e que esse pensamento, como todos os outros − assim como Descartes o mostrou − não poderia residir em nenhum fragmento de matéria. A raiva seria, portanto, espírito. Porém, quando me volto para minha própria experiência da raiva, devo confessar que ela não estava fora do meu corpo, mas inexplicavelmente nele”.
Em seguida, o enunciado, muito bem montado, pede um contraponto à ideia que, em resumo, acabamos de apresentar. E, para fazer a contraposição, nada melhor que a concepções cartesianas de res cogitans e res extensa. Assim:
a) Correta. Descartes apresenta, sim, uma visão dualista sobre o ser humano, diferentemente de Merleau-Ponty. Sua conhecida frase “Penso, logo existo, existo enquanto coisa que pensa”, deixa muito clara tal concepção. Uma pena que, na imensa maioria das vezes, ela é citada pela metade, deixando de lado a preciosa informação “enquanto coisa que pensa”. Quando o autor escreveu isso em sua obra Meditações Metafísicas, deixou evidente que, entre outras coisas, a garantia de sua existência como coisa pensante (res cogitans) não é, necessariamente, a garantia de sua existência como coisa material, física (res extensa) – e nisso reside a “dualidade”, corretamente mencionada nessa alternativa.
b) Incorreta. Se tivéssemos que enquadrar René Descartes em alguma escola filosófica, não seria a “naturalista”, como apresenta o item, equivocadamente. Descartes, na história da filosofia, é conhecido como “mecanicista” ou “racionalista”, a depender do que estivermos a comentar. O Descartes mecanicista não faz contraponto ao texto de Merleau-Ponty e, portanto, nada tem que ver com esse exercício (já que o enunciado da questão quer que pensemos Descartes em relação à Ponty). O Descartes racionalista, por sua vez, foi suficientemente explicado, para fins de resolução dessa questão, na alternativa acima. Em suma: o item faz uma classificação incorreta de René Descartes, e por isso é errado.
c) Incorreta. A premissa realista não pode ser considerada por Descartes. Segundo o próprio autor, a construção do pensamento filosófico tem de começar duvidando da realidade do corpo. Aliás, segundo o “argumento do sonho”, a construção do pensamento filosófico tem de começar duvidando da realidade da própria vida, no seu todo (e não apenas do corpo). Assim, esse item não pode ser correto. O corpo, como “real”, é, no máximo, ponto de chegada, nunca ponto de partida (“premissa”, como colocou a alternativa).
d) Incorreta. O enunciado diz “no que se refere ao problema do corpo”. Esse é o escopo? Pois bem: então a alternativa é errada. É verdade que o autor, em vários momentos de raciocínio sustenta argumentos racionalistas (e, segundo as críticas de alguns, argumentos idealistas), mas isso não poderia, nem sob a forma de exagero, enquadrar as reflexões sobre o corpo, tomando como “coisa extensa”; mecânica.
e) Incorreta. O item não encontra justificativa no pensamento cartesiano, uma vez que sugere uma “posição intencionalista”, conceito estranho ao debate proposto – relação corpo e alma, matéria e mente, etc.