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Questão 75 Enem 2023 - dia 1 - Linguagens e Ciências Humanas

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Questão 75

Descartes

Eu poderia concluir que a raiva é um pensamento, que estar com raiva é pensar que alguém é detestável, e que esse pensamento, como todos os outros - assim como Descartes o mostrou -, não poderia residir em nenhum fragmento de matéria. A raiva seria, portanto, espírito. Porém, quando me volto para minha própria experiência da raiva, devo confessar que ela não estava fora do meu corpo, mas inexplicavelmente nele.

MERLEAU-PONTY, M. Quinta conversa: o homem visto de fora. São Paulo: Martins Fontes, 1948 (adaptado).


No que se refere ao problema do corpo, a filosofia cartesiana apresenta-se como contraponto ao entendimento expresso no texto por
 



a)

apresentar uma visão dualista.

b)

confirmar uma tese naturalista.

c)

demonstrar uma premissa realista.

d)

sustentar um argumento idealista.

e)

defender uma posição intencionalista.

Resolução

As provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) são praticamente as únicas no país que utilizam textos do filósofo francês Merleau-Ponty para montarem suas questões. Porém, nunca se cobra uma especificidade desse autor, ou seja, um pensamento próprio; sua teoria. Em mais de uma oportunidade, por exemplo, o Enem já utilizou textos do livro O Filósofo e sua sombra. Nessas oportunidades, fez com que os estudantes pensassem sobre as características da filosofia e, mais ainda, sobre a história da filosofia e a atividade do próprio filósofo. Com textos de Merleau-Ponty, as questões sempre foram muitos interessantes, e sempre exigindo competências e habilidades de leitura, comparação e valorização da cultura conceitual ocidental.

Dessa vez, exigiu-se leitura de excerto contido no artigo “Quinta conversa: o homem visto de fora”. E o resumo das ideias do autor, para fins didáticos, poderíamos expressar da seguinte maneira: o homem visto de fora é o mesmo visto de dentro. A paráfrase, aqui, sintetiza a fenomenologia de Ponty: o humano é o seu corpo; uno; inseparável. Não por acaso, o texto apresentado aos candidatos e candidatas foi: “Eu poderia concluir que a raiva é um pensamento, que estar com raiva é pensar que alguém é detestável, e que esse pensamento, como todos os outros − assim como Descartes o mostrou − não poderia residir em nenhum fragmento de matéria. A raiva seria, portanto, espírito. Porém, quando me volto para minha própria experiência da raiva, devo confessar que ela não estava fora do meu corpo, mas inexplicavelmente nele”.

Em seguida, o enunciado, muito bem montado, pede um contraponto à ideia que, em resumo, acabamos de apresentar. E, para fazer a contraposição, nada melhor que a concepções cartesianas de res cogitans e res extensa. Assim:

a) Correta. Descartes apresenta, sim, uma visão dualista sobre o ser humano, diferentemente de Merleau-Ponty. Sua conhecida frase “Penso, logo existo, existo enquanto coisa que pensa”, deixa muito clara tal concepção. Uma pena que, na imensa maioria das vezes, ela é citada pela metade, deixando de lado a preciosa informação “enquanto coisa que pensa”. Quando o autor escreveu isso em sua obra Meditações Metafísicas, deixou evidente que, entre outras coisas, a garantia de sua existência como coisa pensante (res cogitans) não é, necessariamente, a garantia de sua existência como coisa material, física (res extensa) – e nisso reside a “dualidade”, corretamente mencionada nessa alternativa.

b) Incorreta. Se tivéssemos que enquadrar René Descartes em alguma escola filosófica, não seria a “naturalista”, como apresenta o item, equivocadamente. Descartes, na história da filosofia, é conhecido como “mecanicista” ou “racionalista”, a depender do que estivermos a comentar. O Descartes mecanicista não faz contraponto ao texto de Merleau-Ponty e, portanto, nada tem que ver com esse exercício (já que o enunciado da questão quer que pensemos Descartes em relação à Ponty). O Descartes racionalista, por sua vez, foi suficientemente explicado, para fins de resolução dessa questão, na alternativa acima. Em suma: o item faz uma classificação incorreta de René Descartes, e por isso é errado.

c) Incorreta. A premissa realista não pode ser considerada por Descartes. Segundo o próprio autor, a construção do pensamento filosófico tem de começar duvidando da realidade do corpo. Aliás, segundo o “argumento do sonho”, a construção do pensamento filosófico tem de começar duvidando da realidade da própria vida, no seu todo (e não apenas do corpo). Assim, esse item não pode ser correto. O corpo, como “real”, é, no máximo, ponto de chegada, nunca ponto de partida (“premissa”, como colocou a alternativa).

d) Incorreta. O enunciado diz “no que se refere ao problema do corpo”. Esse é o escopo? Pois bem: então a alternativa é errada. É verdade que o autor, em vários momentos de raciocínio sustenta argumentos racionalistas (e, segundo as críticas de alguns, argumentos idealistas), mas isso não poderia, nem sob a forma de exagero, enquadrar as reflexões sobre o corpo, tomando como “coisa extensa”; mecânica.

e) Incorreta. O item não encontra justificativa no pensamento cartesiano, uma vez que sugere uma “posição intencionalista”, conceito estranho ao debate proposto – relação corpo e alma, matéria e mente, etc.