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Questão 1 Unicamp 2024 - 2ª fase - dia 2

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Questão 1

Hannah Arendt Segunda Guerra Mundial Guerra Fria

Texto 1

Não há motivo para duvidar de nossa atual capacidade para destruir toda a vida orgânica na Terra. A questão é apenas se desejamos usar nessa direção nosso novo conhecimento científico e técnico, e essa questão não pode ser decidida por meios científicos; é uma questão política de primeira grandeza, cuja decisão, portanto, não pode ser deixada a cientistas profissionais ou a políticos profissionais (...). Se for comprovado o divórcio entre o conhecimento (no sentido moderno de conhecimento técnico) e o pensamento, então passaríamos a ser, sem dúvida, escravos indefesos do nosso conhecimento técnico; nos tornaríamos criaturas desprovidas de pensamento à mercê de qualquer engenhoca tecnicamente possível, até mesmo da mais mortífera.

(Adaptado de: ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária, p. 3-4, 2010. Obra publicada pela primeira vez em 1958.)

 

Texto 2

A manifestação do pensamento não é o conhecimento, é a capacidade de distinguir o certo do errado, o belo do feio. E isso, na verdade, pode impedir catástrofes (...).

(ARENDT, H. Pensamento e Considerações Morais. In: Responsabilidade e Julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, p. 257, 2003. Texto publicado em 1971.)


Hannah Arendt escreveu o texto 1 ainda sob o impacto da catástrofe humanitária sem precedentes causada pelo lançamento de bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagazaki em agosto de 1945. A bomba atômica foi produzida nos Estados Unidos, por uma equipe de cientistas liderados por Julius Robert Oppenheimer, e lançada sobre as cidades japonesas por decisão do governo norte-americano. Considerando os seus conhecimentos e os textos 1 e 2 acima, responda:

a) De acordo com Arendt, qual questão não deve ser deixada a cientistas e políticos profissionais? Justifique relacionando a questão com o contexto em que o texto 1 foi escrito.

b) Por que o conhecimento científico e técnico não pode ser divorciado do pensamento? Justifique com base na noção de pensamento apresentada pela autora.



Resolução

a) A questão que Hannah Arendt acredita que não deve ser da responsabilidade de cientistas e políticos profissionais é a que determina qual direção deve ser dada ao conhecimento científico, ou seja, quais diretrizes esse conhecimento vai seguir e para o que ele será usado. Esse posicionamento da pensadora alemã, expresso em seu livro A Condição Humana (1958), dialoga intensamente com o final da Segunda Guerra Mundial e com o cenário de Guerra Fria que se sucedeu ao conflito global. Após o lançamento das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, ao final da Segunda Guerra, o mundo foi apresentado a um poder destrutivo como nunca antes testemunhado, o que já se conecta ao cerne do questionamento da autora: o avanço do conhecimento técnico levou a um gigantesco poder de destruição, que foi colocado em prática tanto por cientistas que só tinham interesse em um avanço da ciência como forma de amplificar suas próprias conquistas profissionais e acadêmicas e por políticos que desejavam garantir os interesses de seus países no cenário de finais de guerra. Essa dinâmica permaneceu ao longo da Guerra Fria, quando a corrida armamentista entre Estados Unidos e União Soviética colocou o mundo sob constante tensão nuclear. A partir desse cenário, a autora conclui que essas decisões não poderiam ficar a cargo de cientistas e políticos profissionais, já que esses, em busca de ganhos pessoais, prestígio acadêmico, avanço abstrato da ciência e preservação de interesses geopolíticos e militares, poderiam tomar caminhos que aproximariam o mundo da destruição.

b) Hannah Arendt diferencia conhecimento de pensamento. Para a autora, conhecimento diz respeito ao conhecimento técnico, ou seja, possuir o saber e a capacidade para se realizar algo. Já pensamento seria a possibilidade de discernimento, distinguindo, em uma dimensão ética e moral, o que seria certo e o que seria errado. Dessa forma, podemos concluir que o conhecimento não conta com o ato de julgamento, enquanto o pensamento representa uma avaliação moral de toda a situação. Caso dissocie-se o conhecimento científico e técnico do pensamento, portanto, abre-se mão do julgamento e da responsabilidade, criando uma situação na qual a busca pelo avanço científico possa prescindir de moralidade ou ética, possibilitando a ocorrência de desastres que podem afetar de maneira definitiva a humanidade.