Dentre os diversos artefatos culturais produzidos durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), o disco Tropicália ou Panis et circenses (1968) assinalou, a um só tempo, um choque e uma inflexão no modo de fazer e pensar a música popular do país. Lançado em dezembro de 1968, ele trazia em sua concepção frescor inventivo e irreverência. Com recursos da paródia, do pastiche e, sobretudo, da alegoria, o tropicalismo retirou das contradições da sociedade brasileira a matéria-prima de sua produção simbólica.
(Adaptado de: PONTES, H e outros. “Da orla à sala de Jantar”. Novos Estudos Cebrap, 38 (3), 2019.)
(GERCHMAN, R. Capa do Disco Tropicália ou Panis Et Circencis, 1968.)
Analisando texto e imagem, responda:
a) A imagem trabalha com contraposições construídas pelo movimento tropicalista. Identifique dois pares de elementos culturais que estão em oposição e justifique sua escolha.
b) Explique qual a visão do movimento tropicalista sobre a identidade nacional brasileira. Cite uma produção cultural desse movimento que ilustre o seu argumento.
a) Podemos identificar na capa do disco Tropicália (1968) inúmeras referências a acontecimentos inseridos no contexto cultural dos anos 1960. A própria foto possui clara ligação com discos internacionais lançados naquela época, especialmente Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band, dos Beatles (1967). Inicialmente, podemos perceber a presença da banda de Rock Os Mutantes, composta por Rita Lee, Sérgio Dias e Arnaldo Batista. Os dois rapazes da banda estão segurando guitarras elétricas, enquanto ao lado deles está a figura do cantor Tom Zé, que carrega uma bolsa de couro de característica nordestina. Dessa forma, é possível contrapor a sonoridade do rock internacional do período, com a música nordestina. Já a cantora Gal Costa aparece sentada, com um vestido tipicamente popular, porém ao seu lado está o poeta Torquato Neto, com uma boina e roupa tipicamente francesa. Gilberto Gil está sentado ao chão à frente, com roupas tipicamente orientais, possivelmente alusão ao movimento hippie, porém segura uma foto do músico Capinan, vestido de forma formal e tradicional. Também há o produtor musical Rogério Duprat, que sentado segura um penico. Como tal situação está completamente fora de contexto, é possível dizer que essa é uma referência ao dadaísta Marcel Duchamp.
b) A ideia de identidade nacional defendida pelo tropicalismo remontava às questões inicialmente colocadas pelo movimento modernista da década de 1920. Tentava resgatar especialmente o conceito de antropofagia, uma vez que a cultura nacional não poderia ficar estática dentro de si mesma. A ideia de mistura e mescla com “aquilo que vem de fora” seria fundamental para a modernização cultural brasileira. Nesse sentido, enquanto o modernismo do início do século entrou em choque com o parnasianismo, o tropicalismo no campo da música se opôs à MPB tradicional, que não admitia guitarras elétricas e posturas do rock internacional em nossa cultura, considerando-os uma invasão imperialista sobre a cultura nacional. Ao contrário, os tropicalistas investiram em misturar essas sonoridades ditas modernas com elementos nacionais, tais como a música nordestina ou a dos antigos cantores do rádio. No festival de Música Popular Brasileira, realizado pela TV Record em 1967, tanto Caetano Veloso quanto Gilberto Gil defenderam músicas entoadas por bandas de rock, fato que se chocava com a postura de artistas tais como Chico Buarque e Edu Lobo. Devemos lembrar que o movimento não se restringiu à música popular e também esteve ativo nas artes plásticas com Hélio Oiticica, na poesia concreta, no cinema, com filmes de Glauber Rocha (Terra em Transe) e no teatro, com José Celso Martinez Correa, que produziu o espetáculo O Rei da Vela.